Nega Sônia...uma bela fábula inspirada em música de Noel Rosa

Maio é o mês das noivas...e é também o mês em que se comemora a morte de Noel Rosa, dia 4, há 77 anos. O texto abaixo foi publicado na finada Revista Bravo!, em maio de 2010...um belo texto do dramaturgo Newton Moreno que transita pelos dilemas de cor que nos alcança de vários modos e em várias situações bizarras, banais ou extraordinárias...
O autor do texto é assim apresentado pelos editores da revista: "Consagrado por traduzir a cultura popular nordestina por meio de uma escrita de grande potência poética, o dramaturgo e diretor teatral Newton Moreno, pernambucano de 42 anos radicado em São Paulo, sobe o morro do Rio de Janeiro para homenagear Noel Rosa (1910-1937).
Em Nega Sônia - texto teatral que se segue, escrito a pedido de BRAVO! - ele troca os temas regionalistas de seu estado natal pela cultura carioca. O autor de espetáculos como As Centenárias (Prêmio Shell de melhor dramaturgia) e Memória da Cana (Prêmio APCA de Melhor Espetáculo e Prêmio Shell nas categorias melhor direção e cenário), Moreno traduz a essência do grande compositor do Rio de Janeiro, fundamental para a popularização do samba de morro na cidade.
O resultado é uma fábula de rara beleza, contando uma história de amor improvável que capta o universo apaixonado de Noel Rosa e o reveste de lirismo."

Nega Sônia - Noel Rosa

Botequim.

Mesa com três músicos que estão terminando de executar uma canção de Noel Rosa. Um destes músicos é o próprio Noel Rosa, que dedilha seu violão enquanto narra a estória que se segue.
A seu lado, uma mulher e um homem acompanham-no em suas músicas.
Estes dois interpretarão Nega Sônia e o Jardineiro, personagens desta estória. Quando necessário, largam os instrumentos e assumem a cena.
Ao finalizar a canção...

NOEL: Nega Sônia nasceu preta. Nasceu à noite. Nasceu flamengo. Nasceu num barraco no morro. Nasceu no berço dos clichês afro-descendentes brasileiros. Seu nome era Sônia, mas todos a chamavam de Nega, ou Nega Sônia. Viveu por anos a alegria de ser negra, porque nasceu sem medo de ser preta também. Sua mãe não era como esse povo que vive falando para o filho na barriga: "Olha, você vai ter que ser forte, viu? Esse mundo não é pros preto". Não. Nasceu consciente e sem fraqueza. Nasceu de ponta cabeça erguida, escura, reluzente, enlameada de vermelho denso, vermelho tenso, espesso, quase preto. Nega Sônia veio para ser mulher de raça. Foi ficando moleca arredondada, robusta, com quatro anos já sambava com as irmãs mais velhas. Parecia que Nega Sônia subia morro acima seu destino cor de ébano tropical. Mas Nega Sônia, que nasceu preta, foi ficando branca.
O que ninguém entendia eram aqueles pontinhos brancos que foram crescendo, crescendo, crescendo. A mãe achou que passava logo, mas não. Pano branco, mancha de praia, coisa sem demora de ficar no corpo. Cada pequena mancha branca derramava-se sobre o corpo da menina como uma lava a tomar o corpo todo de Nega. No aniversário de 15 anos, Nega pediu para usar manga comprida com receio da retaliação dos amigos e flertes. Os braços estavam tomados. Aí começou o medo de Nega Sônia. E se ficar branca? A mãe chorou; o pai, não. O médico não entendia porque a doença do vitiligo era tão forte em Nega. Caminhava com uma voracidade incrível, tomando hemisfério norte e sul e, por fim, ameaçando-lhe o rosto. Nega Sônia tinha esperança que o rosto lhe fosse poupado. O rosto ao menos. O rosto preto que aprendera a adornar com brincos de prata, batons de bronze, tiaras coloridas, fivelas brancas. O rosto em que estudou desde pequena a beleza da maturidade. A Nega, que alimentou nos desenhos ao espelho o desejo da fêmea, afundava num mar de pele traidora e pálida, quase rosada, invadindo seu rosto.
E assim Nega Sônia que nasceu preta ficou branca de vez. Uma branca meio albina com seus traços da raça embranquecidos.
E consumia-se de vergonha de sair de casa e enfrentar os amigos. Mudou de bairro e foi para casa da tia, por uns tempos, até ver se a cor voltava, ou a alegria voltava. Lá, todo mundo, menos a tia, a conheceu branca. Tinha menos pudor em sair à rua, fazer amigos, escola, o que fosse. Foi substituir a tia na casa da patroa dela. Ficou uma semana como doméstica. Ficou o suficiente para ouvir: "Que branca ajeitadinha, faz serviço que nem as pretas da casa".
O que doeu mais? Naquela hora, ser chamada de branca. Doeu de macerar lágrimas de seus olhos. Lágrimas que ela torcia que lavassem sua tinta clara. Fugiu para o jardim para chorar escondida, mas quando o jardineiro chegou junto, doeu de novo, mas da beleza do que ele dizia.

JARDINEIRO: Quem rega as pranta sou eu. Guarde suas água para sua flor de formosura que eu estou vendo as pétalas dela de dentro de seus olhos.

NOEL: Tudo que aquele homem dizia era poesia para Nega. Ele falava tão bonito que parecia outro idioma, que as palavras mudavam de lugar, de sentido, de sexo. Era como se ela precisasse de um professor de português para acompanhar sua fala. Ele usava uns óculos pesados, de deformar os olhos mesmo. Talvez por isto não percebesse a estranha coloração da pele de Nega Sônia.
Nega Sônia começou a trabalhar na casa só para ficar junto dele. O jardineiro.

JARDINEIRO: Você tem flor demais dentro da alma, vou cuidar delas, posso?

NOEL: Nega que nasceu preta e hoje é branca ficou translúcida de tanto amor. Amor. Quem diria, hein, Nega Sônia? Branca ficou pálida, o sangue lhe fugiu.

NEGA SÔNIA: Mas ele não me conhece direito. Não sabe quem eu sou por baixo dessa armadura de vitiligo. Não sabe que nasci Nega Sônia. Mas se ele me amou branca...

JARDINEIRO: Da vontade de pintar um desenho de pássaro em você, um desenho de sol, um desenho de um pedaço bonito da natureza nessa sua brancura de pele.

NEGA SÔNIA: ... ele vai me amar como sou, ou como estou.

NOEL: E, de repente, Nega Sônia descobriu como ficar mais linda noutro tom. Imprimiu outros adornos. Batom vermelho, blusa mais escura, voltou a ser mulher. Sua beleza superava a casca que a doença lhe trouxe. Um dia, ele plantava um lírio com o testemunho adocicado de Nega e disse:

JARDINEIRO: Quer virar um lírio meu?

NEGA SÔNIA: Eu já sou.

JARDINEIRO: Quer morar comigo? Casar? Comigo?

NOEL: Nega Sônia desmaiou. Acordou com o jardineiro abanando-a com um copo-de-leite.

NEGA SÔNIA: Mas há coisa sobre meu passado...

JARDINEIRO: Quem não errou? Quem?

NOEL: Beijou-lhe.

Na mesma semana, um recado chegou de casa. O remédio que ela pediria esperava por ela no posto médico. O remédio que a devolveria para Nega Sônia. O tratamento iria começar. Tinha um amor e agora teria a si mesma de volta. A tia fez festa, a mãe mandou chamar. Decidiu fazer uma surpresa ao jardineiro.

NEGA SÔNIA: Vou viajar, pedir a benção de meus pais e volto para tu conhecer a verdadeira Sônia.

NOEL: O jardineiro sofreu com a despedida, chorou e disse desta vez de um jeito bem simples:

JARDINEIRO: Eu amo você. Volte.

NOEL: Ela foi e tomou todas as doses possíveis do remédio, foi ficando negra, negra, negra. O rosto foi o primeiro lugar de onde a peste branca fugiu. E o seu sorriso funcionava melhor na moldura de ébano. Nega Sônia brilhava era assim. Desenterrou da gaveta os brincos de prata, os batons de bronze, as fivelas. Os colants cor de gelo, tudo que endeusava sua beleza africana. Nega Sônia voltava. Inteira. Pronta. Disse.

NEGA SÔNIA: Pai, mãe, agora que voltei a ser eu mesma, vou buscar o amor.

NOEL: Foi. Desceu o morro. Rebolando muito. Fez-se uma trilha sonora para seus movimentos. Escura, seu quadril aumentava. Tudo impressão da Nega, mas e daí? Nega Sônia que nasceu preta ficou branca de vitiligo achou-se de novo na cor negra. E agora o jardineiro.

NEGA SÔNIA: Cheguei.

NOEL: O jardineiro saltou para um beijo em Nega, mas...

JARDINEIRO: Quem te queimou?

NOEL: Nega Sônia explicou tudo e ele chorou.

Depois ele deu-lhe um safanão que arrancou o brinco de prata e disse desta vez de um jeito bem simples:

JARDINEIRO: Sua nega safada, você me enganou. Pintou-se de macaca branca para me seduzir. Quer macho idiota, fique com sua raça. Eu não gosto de sua cor.

NOEL: Machucou o jardim da patroa inteiro quando saiu correndo assustado consigo mesmo.

Nega Sônia empalideceu (mas não tanto) e quando ia chorar, olhou-se no espelho d'água da fonte. Viu Nega Sônia de volta. Viu amor. Quem diria, hein, Nega Sônia? As lágrimas, que já contornavam os cílios, voltaram para dentro para aguar a flor de formosura que tinha nela. Tinha muita flor dentro da alma. Levantou-se, catou uns lírios para combinar com o rosto. E saiu à procura de um morro para subir rebolando, rebolando muito. Nessa hora, os três começam uma nova canção de Noel...

Feitio De Oração
(Noel Rosa / Vadico)

Quem acha vive se perdendo/ Por isso agora eu vou me defendendo/ Da dor tão cruel desta saudade/ Que, por infelicidade,/ Meu pobre peito invade// Batuque é um privilégio/ Ninguém aprende samba no colégio/ Sambar é chorar de alegria/ É sorrir de nostalgia/ Dentro da melodia // Por isso agora lá na Penha/ Vou mandar minha morena/ Pra cantar com satisfação/ E com harmonia/ Esta triste melodia/ Que é meu samba em feito de oração// O samba na realidade/ Não vem do morro nem lá da cidade/ E quem suportar uma paixão/ Sentirá que o samba então/ Nasce do coração.

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