Carta Aberta à Praça da Liberdade
Como escrevi na postagem anterior, estou publicando a minha Carta Aberta à Praça da Liberdade, escrita a partir de uma profunda rejeição a uma notícia (dada de forma solene, à época, durante apresentação musical da cantora Dodora Cardoso) de que a Praça teria uma estátua consagrada ao ex-Senador (já falecido) Dinarte Mariz. A notícia, tempos depois, tornou-se realidade. E hoje, quem passa pela praça vê a estátua apontando o dedo para o infinito...
Dias depois de ouvir a tal notícia, sentei no meu computador escrevi a carta que segue. Foi publicada à época no sítio www.seol.com.br (hoje desativado). A partir da provocação do poeta Moacy Cirne, achei oportuno republicá-la. Abraços a todos e todas.
"Querida Praça,
Te escrevo de Natal, distante de ti cerca de 300 km. Volta e meia, quando estou em Caicó, andando de um canto a outro da cidade, eis que cruzo com tua presença. Sendo final da tarde, como sabes, resolvo dar uma sentadinha nos bancos e ficar contemplando o passar de gente.
Você está sempre aí, pronta a receber e acomodar quem se aproxima de ti, seja caicoense ou não. Tens o mesmo caráter afetivo-histórico-imagético que outros espaços públicos de nosso município, como o Itans, o Rio Seridó, a Matriz e o Poço de Santana.
Em maior ou menor medida todos os caicoenses tem contigo uma relação meio visceral. Afinal, quantos sólidos casamentos não se iniciaram como leves flertes por entre os bancos que lhe margeiam? Quantos poetas, músicos e artistas em geral não encontraram em ti o espaço perfeito para se inspirarem ou exibirem suas obras? Quantos encontros impensáveis não tiveram você como palco, sob as bênçãos de Santana? Aliás, em que outro espaço, além do largo da Matriz, os devotos e não devotos da padroeira são acolhidos?...Você, efetivamente, encarna o pedaço profano da Festa...
Há outros significados “maiores” ou “menores” que possuis. Depende de quem conta o conto. O que fica é que, em qualquer situação, é inegável a referência que és em termos de passado e presente individual e coletivo, de todos nós.
Tens esse caráter “aberto”, “coletivo”, “comum”, que remonta às suas origens e à origem dos nomes que o povo te deu. No início seu nome era Praça do Mercado, porque era aí que se realizavam as feiras, aos sábados, muito embora, como nos diz a querida professora Ione, na época a feira era muito mais que um lugar para a troca e/ou venda de mercadorias, mas um momento de celebração, de encontros entre amigos e familiares.
Algum tempo depois recebestes o nome que está definitivamente entranhado nos moradores da cidade: Praça da Liberdade. Era sobre seu solo que aconteciam as solenidades de alforria dos escravos, antes da Lei Áurea, o que reforçava o movimento abolicionista e republicano cujos membros caicoenses se reuniam num sobrado bem pertinho de ti. Com uma trajetória desta não há nome melhor.
Ocorre, porém que um certo prefeito resolveu homenagear um dos velhos coronéis da região e tascou o nome dele sobre ti. Ainda assim, pergunte-se a qualquer cidadão de Caicó onde fica a Praça Dinarte Mariz e ninguém saberá explicar onde se localiza. O mesmo não acontece se por acaso a pergunta for onde fica a Praça da Liberdade. A informação será rápida e precisa.
Um outro prefeito, como se quisesse lembrar o povo de que as elites haviam mudado o seu nome, mandou instalar uma placa onde se lê que você tem dois nomes: aquele que a memória popular consolidou e aquele que representa a pior tradição memorialística que herdamos, o de homenagear representantes dos poderosos, das elites. É uma tradição triste: utilizam-se dos signos e dos espaços públicos para memorializar aqueles que têm em sua história e prática a marca da opressão, da afirmação cultural e política de uma minoria espoliadora sobre uma maioria socialmente moldada e submetida sob os signos da intolerância, do medo e de um servilismo, em torno dos quais a palavra democracia vai se tornando uma pobre senhora moribunda, desrespeitada, e abandonada em trapos, no canto da vida política.
Além de se apropriarem das riquezas produzidas socialmente, as elites se apropriam também da história social, definem os autores dos eventos, seus personagens principais, a narrativa, e tratam de garantir a perpetuação de suas interpretações da história através de vários expedientes. Um deles é dar nomes a prédios e espaços públicos. É impressionante, por exemplo, a quantidade de escolas que recebem o nome de personalidades que nunca foram lá ou não sabem que elas existem ou que, pior, ainda que soubessem, jamais teriam a coragem de pôr seus filhos nelas.
Tudo isso, querida praça, tem a ver com um certo boato que correu durante a última Festa de Santana, de que em algum pedaço seu, iriam colocar uma estátua do ex-senador Dinarte Mariz.
Você o conhece...Era um fazendeiro poderoso na região, quando reuniu um monte de pobres trabalhadores rurais e jagunços para impedir o avanço dos comunistas que tentavam tomar o poder e derrubar Vargas. Os “historiadores“ oficiais dizem que ele reuniu todo esse povo e foi pra frente da linha de tiro. Muitos daqueles trabalhadores rurais (que não foram ouvidos por esses “historiadores”) dizem que não só foram “arrebanhados” (alguns até sem arma alguma) para enfrentarem os comunistas, como não viram o tal “coronel” na frente do grupo de combate.
Mais tarde elegeu-se governador. Daqueles que combinam a realização de grandes obras, capazes de impressionar olhos incautos, com a promoção do clientelismo e da perseguição política a adversários. Como os velhos “coronéis”. Tudo em nome da liberdade.
Na década de 60 apoiou ostensivamente a ditadura militar, dando legitimidade a um regime que prendeu, torturou, matou e fez desaparecer brasileiros pelo simples “pecado” de não concordarem com o governo. Até hoje, andam achando por aí ossadas de opositores, desaparecidos...As famílias, por muito tempo, sequer puderam ter uma certidão de óbito...Tudo em nome da liberdade...Depois foi escolhido como senador “biônico”, num arranjo da ditadura para impedir que a chamada oposição tivesse maioria no Congresso Nacional, nos idos de 77, quando o povo brasileiro começava a respirar e botar pra fora sua indignação (aqui, sim, em nome da liberdade), e passou a eleger parlamentares menos dispostos a manter o regime.
Sinceramente, acho que se é para homenagear alguém, melhor seria homenagear um certo Hiram de Lima Pereira, caicoense que está lista dos desaparecidos combatentes da democracia e da liberdade, “sumido” pelo regime que o tal “coronel” apoiou. Você não acha? Penso que dessa maneira estaríamos fazendo justiça aos esquecidos da história e reforçando o sentido que o povo caicoense sempre deu a ti como espaço público e libertário.
Mas, a rigor, no fundo, no fundo, acho que deves ter o nome que tens. Ele é belo. É significativo. É a expressão do caráter público que ao longo da história recebestes.
Agora, não satisfeitos querem te empurrar uma estátua? Bem, não sei o que você pensa sobre o assunto, mas que tal se reunissem nossos artistas e encomendassem a produção de obras que tenham como temática a Liberdade para que fiquem permanentemente instaladas na praça, à vista de todos. Você ficaria muito mais bela, adornada, como uma senhora que se pinta, se embeleza, saudavelmente vaidosa, pronta para receber as pessoas em sua casa.
Mais ainda: você não acha que deveriam pôr mais árvores em seus canteiros para que as tardes quentes pudessem ser suavizadas pelas sombras, permitindo que em qualquer horário pudéssemos usufruir de sua receptividade? Lembra do que fizeram com sua irmãzinha, a praça do Rosário? Tiraram algumas árvores decanas, instalaram uma fonte luminosa que molhava quem se aproximava dela e desperdiçava nosso bem natural mais precioso. Santa modernidade!
Minha querida, vou terminando desejando a você muitas felicidades e torcendo para que esses homens loucos repensem o que pensam em fazer. Estarei torcendo que as cabeças arejadas, conscientes, atentas de nossa cidade se juntem para impedir o crime anunciado.
No mais, um grande abraço,
Alessandro"
Dias depois de ouvir a tal notícia, sentei no meu computador escrevi a carta que segue. Foi publicada à época no sítio www.seol.com.br (hoje desativado). A partir da provocação do poeta Moacy Cirne, achei oportuno republicá-la. Abraços a todos e todas.
"Querida Praça,
Te escrevo de Natal, distante de ti cerca de 300 km. Volta e meia, quando estou em Caicó, andando de um canto a outro da cidade, eis que cruzo com tua presença. Sendo final da tarde, como sabes, resolvo dar uma sentadinha nos bancos e ficar contemplando o passar de gente.
Você está sempre aí, pronta a receber e acomodar quem se aproxima de ti, seja caicoense ou não. Tens o mesmo caráter afetivo-histórico-imagético que outros espaços públicos de nosso município, como o Itans, o Rio Seridó, a Matriz e o Poço de Santana.
Em maior ou menor medida todos os caicoenses tem contigo uma relação meio visceral. Afinal, quantos sólidos casamentos não se iniciaram como leves flertes por entre os bancos que lhe margeiam? Quantos poetas, músicos e artistas em geral não encontraram em ti o espaço perfeito para se inspirarem ou exibirem suas obras? Quantos encontros impensáveis não tiveram você como palco, sob as bênçãos de Santana? Aliás, em que outro espaço, além do largo da Matriz, os devotos e não devotos da padroeira são acolhidos?...Você, efetivamente, encarna o pedaço profano da Festa...
Há outros significados “maiores” ou “menores” que possuis. Depende de quem conta o conto. O que fica é que, em qualquer situação, é inegável a referência que és em termos de passado e presente individual e coletivo, de todos nós.
Tens esse caráter “aberto”, “coletivo”, “comum”, que remonta às suas origens e à origem dos nomes que o povo te deu. No início seu nome era Praça do Mercado, porque era aí que se realizavam as feiras, aos sábados, muito embora, como nos diz a querida professora Ione, na época a feira era muito mais que um lugar para a troca e/ou venda de mercadorias, mas um momento de celebração, de encontros entre amigos e familiares.
Algum tempo depois recebestes o nome que está definitivamente entranhado nos moradores da cidade: Praça da Liberdade. Era sobre seu solo que aconteciam as solenidades de alforria dos escravos, antes da Lei Áurea, o que reforçava o movimento abolicionista e republicano cujos membros caicoenses se reuniam num sobrado bem pertinho de ti. Com uma trajetória desta não há nome melhor.
Ocorre, porém que um certo prefeito resolveu homenagear um dos velhos coronéis da região e tascou o nome dele sobre ti. Ainda assim, pergunte-se a qualquer cidadão de Caicó onde fica a Praça Dinarte Mariz e ninguém saberá explicar onde se localiza. O mesmo não acontece se por acaso a pergunta for onde fica a Praça da Liberdade. A informação será rápida e precisa.
Um outro prefeito, como se quisesse lembrar o povo de que as elites haviam mudado o seu nome, mandou instalar uma placa onde se lê que você tem dois nomes: aquele que a memória popular consolidou e aquele que representa a pior tradição memorialística que herdamos, o de homenagear representantes dos poderosos, das elites. É uma tradição triste: utilizam-se dos signos e dos espaços públicos para memorializar aqueles que têm em sua história e prática a marca da opressão, da afirmação cultural e política de uma minoria espoliadora sobre uma maioria socialmente moldada e submetida sob os signos da intolerância, do medo e de um servilismo, em torno dos quais a palavra democracia vai se tornando uma pobre senhora moribunda, desrespeitada, e abandonada em trapos, no canto da vida política.
Além de se apropriarem das riquezas produzidas socialmente, as elites se apropriam também da história social, definem os autores dos eventos, seus personagens principais, a narrativa, e tratam de garantir a perpetuação de suas interpretações da história através de vários expedientes. Um deles é dar nomes a prédios e espaços públicos. É impressionante, por exemplo, a quantidade de escolas que recebem o nome de personalidades que nunca foram lá ou não sabem que elas existem ou que, pior, ainda que soubessem, jamais teriam a coragem de pôr seus filhos nelas.
Tudo isso, querida praça, tem a ver com um certo boato que correu durante a última Festa de Santana, de que em algum pedaço seu, iriam colocar uma estátua do ex-senador Dinarte Mariz.
Você o conhece...Era um fazendeiro poderoso na região, quando reuniu um monte de pobres trabalhadores rurais e jagunços para impedir o avanço dos comunistas que tentavam tomar o poder e derrubar Vargas. Os “historiadores“ oficiais dizem que ele reuniu todo esse povo e foi pra frente da linha de tiro. Muitos daqueles trabalhadores rurais (que não foram ouvidos por esses “historiadores”) dizem que não só foram “arrebanhados” (alguns até sem arma alguma) para enfrentarem os comunistas, como não viram o tal “coronel” na frente do grupo de combate.
Mais tarde elegeu-se governador. Daqueles que combinam a realização de grandes obras, capazes de impressionar olhos incautos, com a promoção do clientelismo e da perseguição política a adversários. Como os velhos “coronéis”. Tudo em nome da liberdade.
Na década de 60 apoiou ostensivamente a ditadura militar, dando legitimidade a um regime que prendeu, torturou, matou e fez desaparecer brasileiros pelo simples “pecado” de não concordarem com o governo. Até hoje, andam achando por aí ossadas de opositores, desaparecidos...As famílias, por muito tempo, sequer puderam ter uma certidão de óbito...Tudo em nome da liberdade...Depois foi escolhido como senador “biônico”, num arranjo da ditadura para impedir que a chamada oposição tivesse maioria no Congresso Nacional, nos idos de 77, quando o povo brasileiro começava a respirar e botar pra fora sua indignação (aqui, sim, em nome da liberdade), e passou a eleger parlamentares menos dispostos a manter o regime.
Sinceramente, acho que se é para homenagear alguém, melhor seria homenagear um certo Hiram de Lima Pereira, caicoense que está lista dos desaparecidos combatentes da democracia e da liberdade, “sumido” pelo regime que o tal “coronel” apoiou. Você não acha? Penso que dessa maneira estaríamos fazendo justiça aos esquecidos da história e reforçando o sentido que o povo caicoense sempre deu a ti como espaço público e libertário.
Mas, a rigor, no fundo, no fundo, acho que deves ter o nome que tens. Ele é belo. É significativo. É a expressão do caráter público que ao longo da história recebestes.
Agora, não satisfeitos querem te empurrar uma estátua? Bem, não sei o que você pensa sobre o assunto, mas que tal se reunissem nossos artistas e encomendassem a produção de obras que tenham como temática a Liberdade para que fiquem permanentemente instaladas na praça, à vista de todos. Você ficaria muito mais bela, adornada, como uma senhora que se pinta, se embeleza, saudavelmente vaidosa, pronta para receber as pessoas em sua casa.
Mais ainda: você não acha que deveriam pôr mais árvores em seus canteiros para que as tardes quentes pudessem ser suavizadas pelas sombras, permitindo que em qualquer horário pudéssemos usufruir de sua receptividade? Lembra do que fizeram com sua irmãzinha, a praça do Rosário? Tiraram algumas árvores decanas, instalaram uma fonte luminosa que molhava quem se aproximava dela e desperdiçava nosso bem natural mais precioso. Santa modernidade!
Minha querida, vou terminando desejando a você muitas felicidades e torcendo para que esses homens loucos repensem o que pensam em fazer. Estarei torcendo que as cabeças arejadas, conscientes, atentas de nossa cidade se juntem para impedir o crime anunciado.
No mais, um grande abraço,
Alessandro"
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Um abraço.
Voltarei. Voltarei.
Justa Homenagem a Hiram de Lima Pereira... pai de Nadja, Sacha, Zodja e Hanya, esposo e companheiro de Maria Célia (musicista, pianista, artista, professora de todas as artes, e que também tem história em Caicó)...
De minha parte, mais uma pequena lição de meus conterrâneos de gênese a um dos netos do velho Hiram, que a ditadura tentou impedir que me ensinasse em presença... aprendi mesmo assim...
Vida Longa aos Quixotes, Forrós e Baiões!
Estou passando pelas terras pernambucanas e potiguares em julho e gostaria muito de conhecer a terra de meu avô, o bom e Velho Hiram de Lima Pereira, lembrado e homenageado por Quixotes, por Forrós e por baiões... Gostaria muito de sua ajuda e companhia.
Fico na Escuta, camarada.
Abraços
Há braços!