Para ouvir Nelson Cavaquinho, depois de amanhã
Não sou analista político. Este não é meu ofício. Faço prognósticos sobre o futuro com o mesmo rigor de qualquer torcedor antes de seu time iniciar uma partida de futebol. Às vezes, acerto e me orgulho. Às vezes erro fragorosamente e tento ajustar a mira. Mas, o aprendizado em minha militância política (mais efetiva nos tempos difíceis em que defender o PT numa disputa eleitoral era algo, no mínimo, exótico), com gente, vivências e leituras, alimentam minha intuição.
Tudo o que escrevo a seguir é produto disso, neste momento em que muitas pesquisas apontam a vitória da candidatura de Lula à presidência, em meio a um processo turbulento em que até a realização das eleições foi posta em dúvida.
Do ponto de vista da lógica do título deste escrito, este é o nosso “hoje”.
O “ontem”, aos meus olhos com alguma perda de visão, amanheceu com a emergência explosiva, vigorosa e organizada, de um fascismo que era latente, em um tempo que seria o “antes de ontem”.
A possibilidade da vitória de Lula - nas formas assumidas de uma composição prévia com segmentos que, até “dias atrás” se encontravam golpeando a democracia em apoio à deposição da então presidenta Dilma - traz vários tipos de esperanças, mas também de preocupações. O “amanhã” se relaciona com tudo o que é consequência dessa possibilidade, ou seja, a garantia de que o resultado eleitoral seja reconhecido e a posse de Lula não seja objeto de ameaças.
Os arrotos contra o reconhecimento do resultado das urnas deram uma diminuída, mas ainda são ouvidos, então, a má-digestão em torno de uma eventual posse de Lula deve ser objeto da atenção de todas as pessoas comprometidas com a democracia. O nosso “amanhã” deveria ser tomado por essas preocupações.
Mas, e o tal “depois de amanhã” do título?
“Depois de amanhã”, o Brasil estará sob um governo cuja composição (veja sua sintética composição no 6o. parágrafo deste escrito) implicará longas, profundas e intensas disputas.
Uma disputa que se dará contra as forças milicianas, ainda organizadas - inclusive armadas - que não se furtarão a sabotar o governo. O formato “parlamentar” e “dentro da ordem” dessas sabotagens se deu contra Dilma, durante todo o ano de 2015, com o protagonismo do então deputado Eduardo Cunha, presidente do Congresso naquela oportunidade. Com a vitória e posse de Lula, considerando que ele consiga amalgamar uma maioria parlamentar, essas ações podem se deslocar e assumir outra forma, menos impactante, mas com alguma capilaridade.
Outra disputa - e a mais complexa - se dará dentro do próprio governo, quanto aos rumos que as políticas públicas deverão tomar. Trata-se da disputa em torno do que o economista Francisco de Oliveira chamava de “Fundo Público”, o conjunto de recursos que o Estado (em suas mais diversas instâncias) dispõe para financiar suas ações. Em um contexto de estreitamento desse fundo, em razão da atual instabilidade causada pela Guerra na Europa, mas, principalmente, pela destruição das estruturas estatais, levada a efeito desde o golpe de 2016, o novo governo Lula terá que conviver com as pressões (que começam já na vice-presidência e se estendem por parte considerável do Congresso, chegando até as calçadas da Faria Lima) no sentido de que este Fundo nem recupere o que se perdeu desde 2016, nem seja propulsor da ampliação de novas conquistas, capazes de deslocarem as hierarquias sociais, como vimos acontecer entre 2003 e 2015.
Tudo isso, com a presença incômoda e assombrosa de forças armadas publicamente comprometidas com as mais canhestras e autoritárias visões sobre si mesmas, sobre o país e sobre nossa sociedade, montadas ali na soleira da porta da democracia e do novo governo.
Assim, o período que teremos pela frente não será de tranquila acomodação sobre os louros de uma vitória sobre os fascistas, mas um novo ciclo de disputas, que envolverá, inclusive, o prumo, o rumo, a direção do leme do novo governo, o que repercutirá, ali na frente, daqui a quatro anos, nas definições sobre sua sucessão, quando, em princípio, não se deverá contar uma candidatura Lula.
Nesse percurso, de disputa da proa até a próxima eleição nacional, qual corpo terá o lado não golpista, o conjunto de sujeitos radicalmente comprometidos com a democracia, as lideranças que se alinham com as mais generosas e profundas transformações para superar nossos atrasos escravocratas? Ou será que continuaremos a não estudar e aprender com a história? Até quando continuaremos a jogar fichas nas supostas boas intenções e compromissos democráticos das nossas classes dominantes, inclusive em golpistas supostamente arrependidos?
Se é o que temos para hoje, o caminho está aberto para que amanhã possamos trilhar as novas lutas, para que, depois de amanhã, os versos de Nelson Cavaquinho (“O sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, o mal será queimada a semente, o amor será eterno novamente”) sejam nosso hino.
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