O que a pandemia interpela aos professores?
A grande maioria dos professores que conheço estão vivenciando a experiência da pandemia do coronavírus mobilizados nas atividades à distância que, em alguma medida, têm que desenvolver. Vivenciam um momento de reorganização de tempos, espaços, procedimentos e relações, cuja origem tem nome, mas é invisível: o COVID-19.
Como educadores, a imersão nessa nova rotinização da vida de cada um pode nos conduzir a pensar, tão somente, nas novas alternativas didático-pedagógicas funcionais à condição inevitável da distância entre nós e os educandos. E, nesse sentido, estaríamos, quando muito, mitigando os efeitos desse distanciamento, possibilitando, nem mais, nem menos, que o cumprimento do que estava estabelecido anteriormente à irrupção da pandemia.
Compreender em que contexto tudo isso está se dando e os aprendizados que podemos extrair desse momento deveria ser não apenas um tarefa para consumo próprio e individual, mas fonte para nossa ação, concreta e imediata, seja agora ou pós-pandemia, como coletivo de educadores.
Nesse sentido, a leitura de um pequeno texto que está circulando pelos grupos de zap, de autoria do prof. Boaventura de Sousa Santos, pode nos ser bastante provocador. E o que escrevo aqui é, na verdade, um exercício de diálogo com esse texto e com colegas educadores, com os quais compartilho (in)certezas e questões, dentro da rotina da educação de pessoas jovens e adultas, no Projeto EJA em Movimento, da UFRN.
Em seu texto - "A cruel pedagogia do vírus" - cujo título é, por si só, provocativo, temos algumas indicações do que temos a ensinar e aprender com toda a situação gerada pelo COVID-19. A recusa em refletir sobre elas podem fazer com que deixemos passar aos nossos olhos, de dentro de nossas casas trancadas, a oportunidade em iniciar um amplo movimento de transformação não apenas individual, mas fundamentalmente, social.
Boaventura aponta que com o coronavírus temos a instituição de uma "normalidade da exceção", ou seja, a crise provocada pela pandemia apenas acentua a crise permanente sob a qual estamos enfiados desde a imposição do neoliberalismo como versão mais antissocial produzida pelo capitalismo em escala mundial. Essa crise permanente, na medida em que se revela como "permanência", ganha ares de "normalidade" se confundindo com o próprio transcorrer dos processos excludentes que promove.
Essa aparência de "normalidade" torna "invisível" (como um vírus) não apenas a crise do capitalismo instaurada pelo neoliberalismo, mas a própria percepção de sua "permanência", naturalizando seus efeitos e causas.
O vírus, assim, aparece-nos como uma alegoria cruelmente perfeita para nos revelar os invisíveis todo-poderosos com os quais convivemos de forma subordinada: o "Mercado", o "colonialismo" e o "patriarcado". Esse poder de "invisibilidade" desses todo-poderosos faz com que eles escapem das discussões que tocam a vida real das pessoas, o que põe em questão o papel dos intelectuais nisso tudo. E como professores, intelectuais que somos, Boaventura nos aponta o dedo inquiridor: estamos discutindo essas questões com o conjunto dos cidadãos ou deixando que elas sejam assumidas por aqueles que tradicionalmente "irracionalizam" essas questões, como os sacerdotes fundamentalistas que vemos espalhados em todas as linhagens religiosas ou pelos segmentos políticos que de tanto naturalizarem a crise permanente do capitalismo somente discutem soluções e alternativas nas cercas do que o próprio capitalismo coloca como possível.
Em minha modesta compreensão, o que o invisível vírus desnuda é a responsabilidade da "normalidade" capitalista pelo caos em que nos encontramos. A pandemia não é resultado de um "descuido" humano ou uma "loucura" da natureza, mas o resultado das escolhas humanas, desde séculos passados, por um determinado modo de se viver (um modo capitalista), cujos efeitos afetam o sistema biológico do planeta, dentro do qual estamos inseridos como uma (ínfima) parte.
Por isso, uma vez suspendido em escala mundial o cotidiano voraz instaurado secularmente, vemos o próprio planeta reagir e se revelar como há muito tempo não acontecia. Esvaziando ruas e indústrias, o coronavírus provocou impactos que põem em causa, fortemente, as mudanças climáticas, na medida em que, por exemplo, a emissão de poluentes despencou conforme os países foram fechando fábricas e lojas, e suspendendo a circulação de veículos nas ruas. Na China, com a pandemia, a emissão de dióxido de nitrogênio, um gás altamente poluente despencou a ponto dos satélites da NASA captarem seu quase sumiço sobre aquele país. Em Veneza, na Itália, as águas turvas dos canais de Veneza estão agora cristalinas. E na Índia, desde o final da Segunda Guerra, o topo do Himalaia não era visível como agora, face a redução da emissão de poluentes no ar.
Por fim, o vírus expõe o perigo, a fragilidade, e a falácia que foi/é a implementação da agenda neoliberal de redução do papel do Estado e de precarização dos serviços públicos, em favor da lógica do mercado, e da extração de lucro como princípio do modus operandi da economia. Todos os governos que se alinharam a essa agenda colocaram em risco a população de seus países, na medida em que tornaram ineficazes e ineficientes as estruturas públicas de acolhimento e tratamento dos cidadãos afetados pela pandemia.
Questionar este modo de viver, instaurado e tornado "normal" é a primeira e principal tarefa dos intelectuais-professores que estão comprometidos em (ainda agora ou depois da quarentena) trabalhar pedagogicamente os currículos com seus estudantes.
Nesse sentido, a pergunta que se impõe é: afinal, se a "ordem natural" que temos é, em última instância, a razão/causa do caos que estamos vivendo hoje, quando retornarmos da quarentena, desejaremos o retorno desta "ordem natural" ou precisaremos iniciar o processo de quebra-la e inventar outra? Será preciso quantos vírus para quebrarmos a ordem e inventarmos outra?
Se não entendermos que "o normal" (o capitalismo) atualmente instituído em suas várias dimensões gerou esta situação em que nos encontramos, não teremos como inventar um "novo normal" depois da quarentena. Trata-se, portanto, de colocarmos a pauta da civilização que desejamos construir não em um futuro distante, mas no agora emergente e emergencial em que estamos vivendo.
Nosso desafio, como intelectuais-professores, é conduzir nosso trabalho pedagógico a partir da pergunta: "se o normal que tínhamos antes criou tudo isso" que novo/outro "normal" precisamos? Certamente, as aulas de história podem nos dizer como esse modelo civilizatório se estruturou e o que produziu ao longo desses séculos até o que temos agora, expondo-os não como obra de uma ação misteriosa e divina, mas obra dos próprios humanos, organizados em coletivos e agindo como tais. A geografia poderá nos mostrar as diferenças abissais que se erigiram entre os países do "Norte" - forjados na espoliação econômica, humana e dos recursos naturais dos países do "Sul" - e esses últimos. A matemática poderá dimensionar as proporções dessa espoliação. E as ciências físico-químico-biológicas poderão mostrar como uma determinada forma de interação que os humanos realizam com a natureza podem provocar tais e quais alterações com impactos profundos em nossa civilização.
Esta tarefa e estas perguntas, já deveriam estar enfiadas em nossas práticas curriculares desde muito tempo, mas estão expostas agora pelo vírus, exigindo de todos nós atitude: (ainda mais na EJA, onde estão sujeitos que, particularmente, sofrem os efeitos das desigualdades desse mundo) nossos currículos, nossos conteúdos farão de conta que nada disso existiu/existe (e, portanto, não nos preparará para novas quarentenas) ou pautaremos essas questões a fim de que, junto com nossos estudantes e colegas, possamos iniciar um novo tempo, de criação de uma nova normalidade, impondo ao debate público uma outra agenda, que implica um novo modo de viver, de relação com a natureza e entre nós?
PARA TER ACESSO À VERSÃO MAIS AMPLIADA DESTE TEXTO, ACESSE: https://drive.google.com/file/d/1tFSvbqZLr2_mdR-aj2kkwDoyMFVR5gfH/view?usp=sharing
Como educadores, a imersão nessa nova rotinização da vida de cada um pode nos conduzir a pensar, tão somente, nas novas alternativas didático-pedagógicas funcionais à condição inevitável da distância entre nós e os educandos. E, nesse sentido, estaríamos, quando muito, mitigando os efeitos desse distanciamento, possibilitando, nem mais, nem menos, que o cumprimento do que estava estabelecido anteriormente à irrupção da pandemia.
Compreender em que contexto tudo isso está se dando e os aprendizados que podemos extrair desse momento deveria ser não apenas um tarefa para consumo próprio e individual, mas fonte para nossa ação, concreta e imediata, seja agora ou pós-pandemia, como coletivo de educadores.
Nesse sentido, a leitura de um pequeno texto que está circulando pelos grupos de zap, de autoria do prof. Boaventura de Sousa Santos, pode nos ser bastante provocador. E o que escrevo aqui é, na verdade, um exercício de diálogo com esse texto e com colegas educadores, com os quais compartilho (in)certezas e questões, dentro da rotina da educação de pessoas jovens e adultas, no Projeto EJA em Movimento, da UFRN.
Em seu texto - "A cruel pedagogia do vírus" - cujo título é, por si só, provocativo, temos algumas indicações do que temos a ensinar e aprender com toda a situação gerada pelo COVID-19. A recusa em refletir sobre elas podem fazer com que deixemos passar aos nossos olhos, de dentro de nossas casas trancadas, a oportunidade em iniciar um amplo movimento de transformação não apenas individual, mas fundamentalmente, social.
Boaventura aponta que com o coronavírus temos a instituição de uma "normalidade da exceção", ou seja, a crise provocada pela pandemia apenas acentua a crise permanente sob a qual estamos enfiados desde a imposição do neoliberalismo como versão mais antissocial produzida pelo capitalismo em escala mundial. Essa crise permanente, na medida em que se revela como "permanência", ganha ares de "normalidade" se confundindo com o próprio transcorrer dos processos excludentes que promove.
Essa aparência de "normalidade" torna "invisível" (como um vírus) não apenas a crise do capitalismo instaurada pelo neoliberalismo, mas a própria percepção de sua "permanência", naturalizando seus efeitos e causas.
O vírus, assim, aparece-nos como uma alegoria cruelmente perfeita para nos revelar os invisíveis todo-poderosos com os quais convivemos de forma subordinada: o "Mercado", o "colonialismo" e o "patriarcado". Esse poder de "invisibilidade" desses todo-poderosos faz com que eles escapem das discussões que tocam a vida real das pessoas, o que põe em questão o papel dos intelectuais nisso tudo. E como professores, intelectuais que somos, Boaventura nos aponta o dedo inquiridor: estamos discutindo essas questões com o conjunto dos cidadãos ou deixando que elas sejam assumidas por aqueles que tradicionalmente "irracionalizam" essas questões, como os sacerdotes fundamentalistas que vemos espalhados em todas as linhagens religiosas ou pelos segmentos políticos que de tanto naturalizarem a crise permanente do capitalismo somente discutem soluções e alternativas nas cercas do que o próprio capitalismo coloca como possível.
Em minha modesta compreensão, o que o invisível vírus desnuda é a responsabilidade da "normalidade" capitalista pelo caos em que nos encontramos. A pandemia não é resultado de um "descuido" humano ou uma "loucura" da natureza, mas o resultado das escolhas humanas, desde séculos passados, por um determinado modo de se viver (um modo capitalista), cujos efeitos afetam o sistema biológico do planeta, dentro do qual estamos inseridos como uma (ínfima) parte.
Por isso, uma vez suspendido em escala mundial o cotidiano voraz instaurado secularmente, vemos o próprio planeta reagir e se revelar como há muito tempo não acontecia. Esvaziando ruas e indústrias, o coronavírus provocou impactos que põem em causa, fortemente, as mudanças climáticas, na medida em que, por exemplo, a emissão de poluentes despencou conforme os países foram fechando fábricas e lojas, e suspendendo a circulação de veículos nas ruas. Na China, com a pandemia, a emissão de dióxido de nitrogênio, um gás altamente poluente despencou a ponto dos satélites da NASA captarem seu quase sumiço sobre aquele país. Em Veneza, na Itália, as águas turvas dos canais de Veneza estão agora cristalinas. E na Índia, desde o final da Segunda Guerra, o topo do Himalaia não era visível como agora, face a redução da emissão de poluentes no ar.
Por fim, o vírus expõe o perigo, a fragilidade, e a falácia que foi/é a implementação da agenda neoliberal de redução do papel do Estado e de precarização dos serviços públicos, em favor da lógica do mercado, e da extração de lucro como princípio do modus operandi da economia. Todos os governos que se alinharam a essa agenda colocaram em risco a população de seus países, na medida em que tornaram ineficazes e ineficientes as estruturas públicas de acolhimento e tratamento dos cidadãos afetados pela pandemia.
Questionar este modo de viver, instaurado e tornado "normal" é a primeira e principal tarefa dos intelectuais-professores que estão comprometidos em (ainda agora ou depois da quarentena) trabalhar pedagogicamente os currículos com seus estudantes.
Nesse sentido, a pergunta que se impõe é: afinal, se a "ordem natural" que temos é, em última instância, a razão/causa do caos que estamos vivendo hoje, quando retornarmos da quarentena, desejaremos o retorno desta "ordem natural" ou precisaremos iniciar o processo de quebra-la e inventar outra? Será preciso quantos vírus para quebrarmos a ordem e inventarmos outra?
Se não entendermos que "o normal" (o capitalismo) atualmente instituído em suas várias dimensões gerou esta situação em que nos encontramos, não teremos como inventar um "novo normal" depois da quarentena. Trata-se, portanto, de colocarmos a pauta da civilização que desejamos construir não em um futuro distante, mas no agora emergente e emergencial em que estamos vivendo.
Nosso desafio, como intelectuais-professores, é conduzir nosso trabalho pedagógico a partir da pergunta: "se o normal que tínhamos antes criou tudo isso" que novo/outro "normal" precisamos? Certamente, as aulas de história podem nos dizer como esse modelo civilizatório se estruturou e o que produziu ao longo desses séculos até o que temos agora, expondo-os não como obra de uma ação misteriosa e divina, mas obra dos próprios humanos, organizados em coletivos e agindo como tais. A geografia poderá nos mostrar as diferenças abissais que se erigiram entre os países do "Norte" - forjados na espoliação econômica, humana e dos recursos naturais dos países do "Sul" - e esses últimos. A matemática poderá dimensionar as proporções dessa espoliação. E as ciências físico-químico-biológicas poderão mostrar como uma determinada forma de interação que os humanos realizam com a natureza podem provocar tais e quais alterações com impactos profundos em nossa civilização.
Esta tarefa e estas perguntas, já deveriam estar enfiadas em nossas práticas curriculares desde muito tempo, mas estão expostas agora pelo vírus, exigindo de todos nós atitude: (ainda mais na EJA, onde estão sujeitos que, particularmente, sofrem os efeitos das desigualdades desse mundo) nossos currículos, nossos conteúdos farão de conta que nada disso existiu/existe (e, portanto, não nos preparará para novas quarentenas) ou pautaremos essas questões a fim de que, junto com nossos estudantes e colegas, possamos iniciar um novo tempo, de criação de uma nova normalidade, impondo ao debate público uma outra agenda, que implica um novo modo de viver, de relação com a natureza e entre nós?
PARA TER ACESSO À VERSÃO MAIS AMPLIADA DESTE TEXTO, ACESSE: https://drive.google.com/file/d/1tFSvbqZLr2_mdR-aj2kkwDoyMFVR5gfH/view?usp=sharing
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