Incidente em um Grupo de Facebook ou Antares é aqui.

Para quem não sabe, Érico Veríssimo tem um romance, "Incidente em Antares" que considero uma obra-prima. Ele foi escrito e lançado em plena ditadura militar , em 1971. Não obstante, é uma obra marcada por um forte tom político, que se mistura com elementos de Realismo Fantástico.
A história se desenrola em uma cidade do Rio Grande do Sul que de tão pequena nem aparece nos mapas, mas que, em sua pequenez, é atravessada por conflitos oligárquicos "grandiosos", entre duas famílias tradicionais, os Campolargo e os Vacarianono, ao mesmo tempo em que se vêem postas diante de uma inédita situação: uma greve geral (é...em sua pequenez, Antares também tinha classe operária), que envolve, inclusive, a categoria dos coveiros.
É na segunda parte do livro que o tal "incidente" ocorre. A greve geral, e dos coveiros em especial, põe a cidade em pavorosa, dado que naquele dia 7 pessoas morrem e ficam à espera dos seus respectivos sepultamentos. Diante do impasse, os mortos "acordam" e juntos voltam à Antares reivindicando o direito à serem enterrados.
Os mortos, representantes dos diversos segmentos sociais (uma prostituta, uma matriarca, um advogado, um pianista, um sapateiro e um bêbado) fazem uma assembleia em pleno 13 de dezembro (uma referência à data do AI-5?) e decidem expor  todas as verdades que sabem, as canalhices políticas, a corrupção entre autoridades e até mesmo os segredos íntimos e familiares inconfessáveis. Mortos que estão, não temem represálias, já que estão livres de qualquer punição. A verdade e a impunidade se irmanam de forma trágica e perversa sob a guarida de um grupo que não tem o que temer. É o fim dos tempos para os vivos. Algo bem mais sofisticado, convenhamos, que um bando de zumbis zanzando e babando pelas ruas querendo morder os aterrorizados moradores de alguma cidade americana (mas há gosto para tudo...).
Ao final do livro, sepultado os mortos, as autoridades iniciam uma verdadeira "operação esquecimento" entre a população para que esquecessem tudo o que havia acontecido. Jornalistas chegados à Antares pouco depois do fim do incidente, foram embora crentes que tudo não havia passado de uma "armação" midiática das autoridades locais. E, de fato, com o retorno à rotina, os moradores já não lembravam mais ou não tinham certeza se todo aquele reboliço não teria sido fruto de uma histeria coletiva. A imagem final do livro fala muito da época em que foi lançado. Diz Veríssimo que Antares havia se tornado uma cidade  próspera, mas que, por vezes, na calada da noite, vultos furtivos pichavam frases politicamente subversivas quando não pornográficas nas paredes das suas ruas. Os guardas municipais os caçavam sem tréguas. Numa dessas, abriram fogo contra um estudante que há pouco havia grafado um "palavrão" num dos muros públicos. Quando os funcionários começam a raspar o palavrão do muro, vai se formando um grupo de curiosos. Passando por ali, um pai levando seu filho pequeno pela mão, a criança pergunta o que está escrito no muro. Após a resposta evasiva do pai - "Nada!" - o moleque, para mostrar que já sabia ler, começa a soletrá-la em voz alta: "Li-ber...", ao que é duramente reprimido pelo pai em pânico e puxado rua abaixo.
Em Antares, temos uma realidade palpável invadida pela fantasiosidade, um evento fantasmagórico inimaginável, comandado pelo improvável, se esgueirando pelas vidas reais e revirando-as de ponta cabeça.
Tudo isso é para dizer que participo (ainda) de um grupo de Facebook denominado "Memórias de Caicó-RN", idealizado e administrado por Elianne Leal, uma pessoa com quem não tenho nenhuma intimidade, mas passei a admirar, pela sensibilidade com que conduz, organiza e provoca as pessoas do grupo a falarem de suas memórias relacionadas à cidade. Lá as pessoas postam fotografias antigas, do acervo pessoal, comentam sobre situações vividas quando crianças ou na juventude, falam sobre aspectos da cultura local. Entre as normas do grupo está que lá não se pode vender nada ou utilizá-lo como local de proselitismo político-partidário ou religioso.
Nunca tinha havido uma divergência, um atrito mínimo sequer. Não haviam memórias incômodas. Naquele mundo paralelo a vida e a memória eram sorridentes e condenadas a assim serem por todo o sempre, como uma comunidade idílica, cuja harmonia acabou sendo quebrada não por uma fantasia, mas por uma dimensão da memória que até então encontrava-se ausente na rotina do grupo: a ligação que a memória tem com a realidade e suas contradições mais viscerais.
A harmonia (fantasiosa?) do grupo foi quebrada pela emergência de uma memória vinda de um mundo "exterior" àquele grupo, como a exterioridade dos mortos de Antares subitamente retornando ao convívio do povo da cidade.
A divulgação, por todos os grandes veículos da imprensa nacional, de que os generais presidentes Geisel e Figueirêdo não apenas sabiam da existência da máquina de moer e assassinar opositores do regime, mas autorizavam as execuções, trouxe de voltas fantasmas, mortes e memórias indesejáveis e incômodas, pelo menos para alguns. Como os defuntos de Antares, a memória de Hiram de Lima Pereira, único caicoense entre os desaparecidos políticos, voltou para aterrorizar aqueles que prezam pelo silêncio e sufocamento desse tipo de memória.
E eis que posto uma referência a ele no grupo do Facebook. Uma postagem que me chega do perfil de uma pessoa que não conheço (mas já virei fã), Janna Ginani, a qual retoma sua memória. A partir daí, Hiram retorna quase por inteiro, através de mais duas postagem minha: um link (https://www.youtube.com/watch?v=jeEMBt-63Y0) que dá acesso a um belo e delicado documentário produzido sobre sua vida; e outra em que reconstituí sua trajetória sobre uma foto. Ali, externei minha admiração por uma pessoa que nunca conheci, mas me senti irmanado pela sua história e suas causas. Me solidarizei com a dor e o afeto de familiares e amigos(as). Deixei claro que a memória da família e dos(as) amigos(as) também era minha e que com aquela notícia de alcance e impacto nacional, também era parte da nossa memória de caicoenses. Aquela memória era, também, uma memória de Caicó.
E aí começa o furdunço. O grupo se transforma em Antares. Em um grupo formado por 5500 pessoas (provavelmente o número de habitantes da imaginária cidade da obra de Veríssimo), cerca de 3000 denunciam a postagem, segundo me informou a administradora. Inicialmente, os argumentos são contundentes de que a primeira postagem tinha uma clara provocação político-partidária. Inclusive, em razão da parte final, onde se faz uma menção (sem identificação) de uma fala do fascistaquenãoquerodizeronomeetodomundosabequemé. Denunciaram que ali haveria uma "parcialidade", inaceitável para as regras do grupo. Frente ao debate de que a "parcialidade" estaria na referência (óbvia?) às palavras do fascistavocêsjásabemquem, postei outra sem as tais referências,
mas apenas a trajetória de Hiram. Inútil. Grupo dividido. Uns defendendo. Outros condenando. O ódio se exala em xingamentos à mim e - o principal - ao fato de que eu teria quebrado a harmonia do grupo. Um juiz, do alto de sua (in)capacidade de mediar conflitos, informa que se a administradora não me eliminar do grupo ele se autoexcluirá. Dava para sentir o cheiro do ódio em cada linha. Dava para ver os olhos esbugalhados daquele autoritarismo. Dava para perceber que o problema não era uma regra supostamente questionada ou quebrada. O problema era que "aquela" memória não deveria transitar por ali, mesmo que ela tenha sido pauta da memória nacional e dissesse respeito aos afetos de caicoenses.
Como os defuntos de Antares, a memória de Hiram chegou e desvelou (como os filmes de David Lynch) que os lençóis estampados com imagens de uma memória feliz e harmoniosa, eram borrifados com perfumes silenciadores de outras memórias igualmente afetuosas, mas trágicas e autoritariamente impedidas de serem cultivadas. Mas, tudo era tácito. Nada declarado. Até que um morto retornasse, como no romance de Veríssimo. Um morto com nome, rosto, história e gente disposta a manter viva sua memória. Um caicoense ilustre que a maioria da população de Caicó desconhece, que em suas características pessoais, traz o melhor da capacidade de resistência sertaneja (lutando contra duas ditaduras), essa resistência tão decantada na boca das elites locais, mas idealizada em uma figura de um vaqueiro abstrato, de um sertão idílico e pré-século 20. Há um outro sertanejo, que brinca de fazer teatro, que compõe, que escreve em jornais contra os atentados às liberdades humanas, que milita em favor das classes subalternas e um deles voltou dos mortos recentemente para atanazar uma certa Antares. Seu nome: Hiram de Lima Pereira.

P.S. A administradora, habilmente, postou que as regras do grupo se mantinham as mesmas e quem quisesse sair do grupo bastava anunciar-se ou sair por conta própria. Eu continuo...rs

Comentários

Unknown disse…
Passei um período no grupo, mas saí por duas razões: 1. superlotava meu zap e muitas das mensagens repetiam outras, não entendo pq repetir algo que outras pessoas já disseram, como perguntar se alguém lembra de determinada pessoa, sendo que 3 ou 4 já fizeram a mesma pergunta pergunt; 2. a tal harmonia me incomodava pq penso que a mmemóriadeve ser ativada para gerar reflexão e isso incomoda, por exemplo, não acho legal a pessoa lembrar, como se fosse bacana, que insultava os doidos na rua. Isso não deveria gerar uma discussão sobre esse compprtamento idiota que tinha na cidade? Se tivéssemos um grupo pra refletir sobre como nossas ações contribuíram ou não com o que a cidade se transformou, eu toparia, mas para uma memória saudosista e sem reflexão, estou fora.
Unknown disse…
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Unknown disse…
Me pergunto quantos dos integrantes do grupo me conhecem e talvez não saibam que falavam de meu pai. Meu coração chora ante a dor pela ignorância que nasce da intolerância cega.
Anônimo disse…
Grande Sandro.
Há tempos não lia seus escritos (e há tempos não ando escrevendo)... Sobre a história? Ah!, ela é infalível...
Sacha Lidice disse…
Sandro,

Estive em uma roda viva tão intensa nos últimos dias que, a partir da sua mensagem, pra mim na inbox do FB, acompanhei os tumultuados fatos no FB , totalmente, tumultuada, também.

Comecei a agradecer as pessoas que homenageavam meu pai, de forma tão espontânea e comovente e o fazia quase que hipnotizada.

Compartilhei sua brilhante analogia dos fatos com o romance de Érico Veríssimo e até, confesso, sem ainda haver tido tempo para me dedicar a uma cuidadosa leitura.

Porém, na leitura superficial e dinâmica que eu havia feito no primeiro momento, já havia captado a grandeza e o brilhantismo do seu texto.

Volto agora pra lhe dizer que, neste exato momento, consigo ler na íntegra o seu texto. Aqui estou eu mergulhada em uma emoção tão intensa - acredite - uma emoção jamais sentida, nem mesmo, nos primeiros instantes em que nossa família se tornou mais uma vítima da ditadura militar de 64.

Como se, pela primeira vez, eu tivesse a consciência exata da dimensão dos fatos que aconteceram com o nosso País e, particularmente, com a nossa família.

Como se há anos eu procurasse enxergar esses fatos através de uma cortina fina e transparente que de algum modo reduzia a intensidade de sua cruel realidade.

E eu nunca havia percebido que fazia parte de uma estratégia para reduzir, sim, essa imensa dor.

Você conseguiu trazer à tona todas as minhas emoções contidas...todas as minhas dores disfarçadas por longos anos, para poder sobreviver a tamanha atrocidade.

Para poder dar conta de concluir a educação dos filhos, dos netos e, agora, da bisneta e de todas as tarefas impostas pela vida que, com certeza, eu não as teria concluído se naquele ano de 1975 eu houvesse me permitido sentir tamanha dor.

Neste exato momento, você me deu a oportunidade de chorar essa dor, de chorar a saudade do meu pai.

Você retirou a cortina atrás da qual escondi o meu sofrimento e, sem a qual, eu não estaria aqui vivendo este momento.

E quero agora lhe contar: A mão, segurando uma flor, que se vê na foto é minha...

Ali eu estava dançando com ele. Infelizmente perdi esta foto original, em que apareço dançando com ele. Eu a perdi quando emprestei a alguém, exatamente, para fazer o corte e deixar só a imagem dele. Era pra emoldurar e colocar em uma biblioteca do PCB, em Recife. Na época não havia os recursos digitais de hoje e a pessoa me devolveu pelo correio. Jamais a recebi.

Seu texto já ganhou o mundo...Espalhou-se pela internet e, como conduz uma ideia, jamais será aprisionado, nem torturado, nem esquartejado, nem jogado às piranhas de um rio qualquer...

Desculpe a demora deste feedback. 💔
Sandro Abayomi disse…
Sacha, cada vez que releio esta sua mensagem me emociono também. E já reli três vezes talvez por vaidade, mas, certamente, para ter certeza de que causei tanta emoção nobre em uma pessoa que nunca vi ou conheci. Est(im)amos juntos a memória de Seu Hiram. Abraços.
Sacha Lidice disse…
Sim, minha irmã, muito nos conhecem e, dentre eles, alguns são nossos parentes(?!?!?!)...E eu, sou de Caicó, mas, nunca soube desse grupo !! - Censura prévia WOW!!!

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