Professores protocolam representação no Ministério Público sobre o redimensionamento da EJA na rede pública estadual
Reproduzimos abaixo, texto integral da Representação ao Ministério Público, feito pelos professores Alessandro Augusto de Azevêdo, Alexandre da Silva Aguiar, Edneide da Conceição Bezerra e Marisa Narcizo Sampaio, em relação à Portaria 1731/2016, da Secretaria de Estado de Educação e Cultura, que orienta a formação de turmas de EJA na rede pública estadual. A Representação foi protocolada no último dia 16de novembro.
Nós, ALESSANDRO AUGUSTO DE AZEVÊDO, ALEXANDRE DA SILVA AGUIAR, EDNEIDE DA CONCEIÇÃO BEZERRA, e MARISA
NARCIZO SAMPAIO, vimos,
perante Vossa Excelência, expor, para ao final requerer, o seguinte:
O Diário Oficial do Estado de 15 de outubro próximo passado
publicou Portaria 1731 pela qual a Secretaria de Estado da Educação e da
Cultura – SEEC/RN estabelece critérios para a Implantação de Turmas de Educação
de Jovens e Adultos – EJA nas Unidades Escolares da Rede Estadual de Ensino.
Conforme a referida portaria, em seu Art. 3º,
“A composição das turmas será feita com base no número de
estudantes matriculados por turma, obedecendo a organização a seguir:
I - No Ensino Fundamental:
a) O I período da EJA, que corresponde a
alfabetização poderá ser oferecido pelo Governo do Estado do Rio Grande do
Norte na forma de Programas ou Projetos em parceria com o Governo Federal, com
outros órgãos, poderes ou entidades.
b) As turmas do primeiro segmento, EJA II e III
períodos, deverão ter no mínimo 30 estudantes na faixa etária de 15 anos ou
mais para ingresso.
c) As turmas do segundo Segmento, EJA IV e V
períodos, deverão ter no mínimo 35 estudantes, na faixa etária de 15 anos ou
mais para ingresso.
II - No Ensino Médio, as turmas deverão ter 40 estudantes,
sendo exigida para ingresso a idade mínima de 18 anos.
III - Esta organização de turmas está definida para a zona
urbana, entretanto para o Campo o quantitativo pode variar de acordo com as
peculiaridades locais, devendo ser submetido à análise da SOINSPE/Núcleo de
Educação do Campo por meio da DIREC”.
Além disso, no artigo seguinte, sobre a validação de turmas,
a portaria indica que será necessária a observância dos seguintes critérios:
“I - existência de demanda compatível com o que determina o
art. 3º desta Norma;
II - a inexistência de outra escola pública que possa
absorver essa demanda;
III - existência de professores do quadro efetivo da rede
estadual, com carga horária disponível.
IV - inexistência de transporte escolar, a fim de deslocar
os estudantes para a Unidade Escolar mais próxima”.
Trata-se, portanto, de uma tentativa de “redimensionamento”
da oferta da EJA na rede pública estadual, na perspectiva de dotar essa oferta
de maior racionalidade, considerando-se a disponibilidade de profissionais e
estruturas físicas para tal e, assim, estruturar a rede a uma melhor capacidade
da rede em atender à demanda da EJA.
Para isso, a portaria apresenta como único dispositivo
efetivo o estabelecimento de um número mínimo de alunos para se criar turmas
nessa modalidade.
Não obstante o intento de dotar a oferta de racionalidade –
o que ninguém em sã consciência poderia se opor – em termos práticos, o
cumprimento estrito do que prevê a portaria poderá significar a negação do
direito à educação àqueles para quem a modalidade EJA foi criada pelo
legislador, através da Constituição de 1988 e principalmente com as demais
normas educacionais, como a Lei 9.394/1996 e as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, de 2001.
O estabelecimento de um número mínimo de matrículas para a
formação de turmas deveria se dar observando-se critérios relacionados à
qualidade do ensino. E no que tange a esse aspecto as preocupações pedagógicas
mais relevantes que têm se manifestado nos debates pedagógicos preocupam-se em
se estabelecer, não “limites mínimos”, mas limites máximos para a formação de turmas.
Diante da ausência de uma normatividade no marco da Lei
9.394/1996, as iniciativas que têm sido realizadas mais recentemente, têm
buscando encontrar parâmetros que considerem critérios como o tamanho médio das
salas das redes, a qualidade da formação dos profissionais em atividade no
nível ou modalidade, bem como a localização das turmas.
Não obstante, há de se ressaltar que a totalidade das
iniciativas, via de regra, apontam limites máximos e não mínimos para a formação de turmas. Ainda assim, numa rápida
consulta a algumas das mais relevantes iniciativas, veremos que os limites se
situam em patamares abaixo do que os
previstos na Portaria 1731.
A título de exemplos, poderíamos citar:
a) A aprovação, pela Comissão de Educação e Cultura
da Câmara de Deputados, em 7 de novembro de 2007, de substitutivo aos projetos
de lei 597/07, do deputado Jorginho Maluly (DEM-SP), e 720/07, do deputado
Leonardo Quintão (PMDB-MG), que estabelece limite
máximo de 25 alunos por professor, durante os cinco primeiros anos do ensino
fundamental; e de 35, nos quatro anos finais do ensino fundamental e no ensino
médio;
b) A aprovação, pela Comissão de Educação e Cultura
do Senado, em 16 de outubro de 2012, de projeto de lei do Senador Humberto
Costa (PT-PE), no qual se prevê que as turmas
do 1º e do 2º ano do ensino fundamental da rede pública deverão ter no máximo
25 alunos, enquanto que no caso das demais
séries dessa etapa e do ensino médio, o limite é 35 estudantes;
c) Parecer n. 8/2010 – CNE/CEB, de autoria do
Conselheiro Mozart Neves Ramos, aprovado em 5 de maio de 2010, que estabelece
normas para aplicação do inciso IX do artigo 4º da Lei nº 9.394/96 (LDB), que
trata dos padrões mínimos de qualidade de ensino para a Educação Básica
pública, pelo qual se prevê como limite
máximo para a composição das turmas
de Ensino Fundamental – Anos Iniciais, 24 alunos, para as turmas de Ensino
Fundamental – Anos Finais, 30 alunos, e para as turmas do Ensino Médio, 35
alunos.
d) Documento Final da Conferência Nacional de
Educação (2015), que propõe o máximo de
20 alunos para as turmas de Ensino Fundamental – anos iniciais – e 25 – anos
finais, e 30 alunos para o Ensino Médio, como critério para a construção do
CAQ – Custo Aluno Qualidade.
Vê-se, portanto, que a perspectiva predominante nas várias
iniciativas relevantes mais recentes, em nosso país, busca estabelecer, a bem
da preocupação com a qualidade do ensino, um limite máximo e não limites
mínimos.
Ainda que seja razoável se pensar em limites mínimos – pensando-se
em termos de racionalidade da oferta – é preciso que se tenha um mínimo de bom
senso para que os limites não ultrapassem os marcos das demandas reais e,
principalmente, sejam estabelecidas de forma a não serem utilizadas para o
constrangimento à garantia do direito. E, no caso em tela, na medida em que a
portaria estabelece um número acima daquilo que se tem convencionado como limite
aceitável sob determinados padrões de qualidade, sem considerar quaisquer
possibilidades de flexibilidade desse limite mínimo, podemos concluir que se
vislumbra duas possibilidades:
a) Situações em que o não alcance dos limites
mínimos impliquem na negação da abertura de uma turma, configurando, portanto, a
subtração do direito àqueles grupos de cidadãos que, somados,
desafortunadamente não alcançarão as quantidades mínimas previstas na portaria;
b) Situações em que turmas infladas pela pressão de
se cumprir os tais limites mínimos, importarão em processos pedagógicos mais
precarizados, importando em prejuízos de aprendizagem.
Nossa preocupação com a negação dos direitos a esse público
se coaduna com o que observa as Diretrizes Curriculares Nacionais da EJA, instituídas
a partir do Parecer 11/2000 – CNE/CBE, nas quais lemos que “a Educação de
Jovens e Adultos (EJA) representa uma dívida social não reparada para com os
que não tiveram acesso a e nem domínio da escrita e leitura como bens sociais,
na escola ou fora dela, e tenham sido a força de trabalho empregada na
constituição de riquezas e na elevação de obras públicas. Ser privado deste
acesso é, de fato, a perda de um instrumento imprescindível para uma presença
significativa na convivência social contemporânea”. (p. 5)
Por isso, uma das funções principais da Educação de Jovens e
Adultos é denominada de “Reparadora”, isto é, “significa não só a entrada no
circuito dos direitos civis pela restauração de um direito negado: o direito a
uma escola de qualidade, mas também o reconhecimento daquela igualdade
ontológica de todo e qualquer ser humano”. (p. 5)
Além disso, nem a portaria, nem a Secretaria de Estado de
Educação e Cultura – SEEC/RN, apresentam uma estratégia de chamada pública
capaz de dotar o Estado de parâmetros reais de demanda para o estabelecimento
dos tais limites mínimos, cumprindo, assim, o que prevê o parágrafo 2º. do art.
37 da Lei 9.393/1996, no qual temos a indicação de que “o Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do
trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si”.
No dicionário Michaellis, o verbo “viabilizar” tem como
significado “tornar viável, tornar exequível ou realizável; outorgar,
possibilitar”, enquanto ao verbete “estimular”, tem-se o seguinte: “Dar
estímulo a; incentivar, incitar o ânimo, a coragem ou o interesse de; animar,
encorajar, entusiasmar”.
O legislador, portanto, ao inscrever na lei tais verbos
indica a perspectiva de que o Estado busque identificar e mobilizar de maneira
concreta a demanda de sujeitos de direito como forma de organizar-se para o
atendimento e não o contrário – somente atender aos que, eventualmente, o
procurem espontaneamente.
Sobre isso, mais uma vez, o já mencionado Parecer 11/2000 –
CNE/CBE, é taxativo ao analisar o imperativo da necessária operacionalidade do
Estado na garantia do exercício do direito à educação ao indicar que: “ao
exercício deste direito corresponde o
dever do Estado na oferta desta modalidade de ensino dentro dos princípios e
das responsabilidades que lhes são concernentes. Entre estas
responsabilidades está o art. 5º da LDB que encaminha à cobrança do direito
público subjetivo e que tem, entre seus
preliminares, o recenseamento da população em idade escolar para o ensino
fundamental, e os jovens e adultos que a ele não tiveram acesso (art. 5º, § 1º,
I) e fazer-lhes a chamada pública. (art. 5º § 1º, II). Isto importa em
oferta necessária da parte dos poderes públicos a fim de que o censo e a chamada escolares não
signifiquem apenas um registro estatístico. Para tanto, o censo deverá
conter um campo específico de dados para o levantamento do número destes jovens
e adultos. (p. 23)
Ora, sem uma estratégia de chamada pública e com tão altos
limites mínimos para a formação de turmas, uma das possibilidades já
assinaladas (a da letra “a”, indicada anteriormente) implicará em um
atendimento bem abaixo não apenas do que atualmente é feito, tendo como
consequência um rebaixamento da capacidade de cumprimento da Meta 5 da Lei
10.049, de 27 de janeiro de 2016 (Plano Estadual de Educação), o qual prevê a
elevação da escolaridade média da população de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove)
anos, de modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos de estudo no último ano de
vigência deste Plano, para as populações do campo, da região de menor
escolaridade no País e dos 25% (vinte e cinco por cento) mais pobres, e igualar
a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE).
Assim, tendo feito o exposto e:
CONSIDERANDO que o artigo 4º, inciso VII, da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional estabelece que o Estado garantirá a
oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e
modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se
aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola;
CONSIDERANDO que o art. 5º da LDB universaliza a figura do
cidadão e não faz e nem poderia fazer qualquer discriminação de idade ou outra
de qualquer natureza, colocando, assim, a educação como um direito público
subjetivo, isto é, um direito positivado, constitucionalizado e dotado de
efetividade e que, portanto, não depende de regulamentação para sua plena
efetividade e o não cumprimento ou omissão por parte das autoridades incumbidas
implica em responsabilidade da autoridade competente. (art. 208, § 2º);
CONSIDERANDO que o artigo 37 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional estabelece que a educação de jovens e adultos será destinada àqueles
que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio
na idade própria;
CONSIDERANDO que o § 1º do artigo 37 da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional estabelece que os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente
aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular,
oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do
alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e
exames;
CONSIDERANDO que o § 2º do artigo 37 da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional estabelece que o Poder Público viabilizará e estimulará o
acesso e a permanência do trabalhador na escola, mediante ações integradas e
complementares entre si;
CONSIDERANDO que nos termos da supracitada, a EJA é uma
modalidade da educação básica;
CONSIDERANDO que o termo modalidade é diminutivo latino de
modus (modo, maneira) e expressa uma medida dentro de uma forma própria de ser,
ou seja, supõe a existência de um perfil próprio, uma feição especial diante de
um processo considerado como medida de referência, um modo de existir com
característica própria, não podendo, portanto, ser regulado conforme os padrões
do ensino regular;
CONSIDERANDO que uma das mais inquestionáveis formas de
omissão na oferta regular de ensino obrigatório consiste no cerceamento de
ingresso ou limitações à continuidade da educação pelo Poder Público;
Vem requerer a intervenção do Ministério Público no sentido
de que a Secretaria de Estado da Educação e da Cultura – SEEC/RN:
1. Apresente um estudo do potencial de matrícula em
EJA nos níveis fundamental e médio por DIRED, município e por território (bairro
ou região), para 2017, nos modos presencial e semi-presencial;
2. Apresente um projeto de diversificação de
atendimento da demanda da modalidade Educação de Jovens e Adultos, com
cronograma de implementação e alcance territorial;
3. Abra um processo de reorganização da estrutura
curricular da EJA na rede pública estadual, que seja compatível com a
diversidade de sujeitos que procuram a modalidade, de forma a envolver
estudantes, professores, coordenadores pedagógicos e gestores das unidades
escolares;
4. Proceda a uma chamada pública daqueles sujeitos
que podem ser atendidos pela EJA na rede pública estadual de educação, em
articulação com os municípios, de modo a planejar com os mesmos, a oferta dos
serviços educacionais nessa modalidade;
5. Reveja os termos da Portaria 1731, no tocante
aos limites mínimos para formação de turmas, estabelecendo, pelo contrário,
limites máximos para a formação de turmas e limites mínimos de atendimento,
considerando critérios como a relação entre o número de professores
disponíveis/estimativa do número de alunos matriculáveis/tamanhos e quantidade
de salas disponíveis/escola.
Aguardamos, assim, informações sobre os encaminhamentos que
o Ministério Público dará à presente petição, nos colocando à disposição para
dialogar consigo e solicitando que quaisquer comunicações sejam endereçadas à
Caixa Postal 1667 – Campus Universitário da UFRN, CEP 59.078-970, Natal-RN,
pelo telefone (84) 9 96071267 ou pelo endereço eletrônico alessandroazevedo.ufrn@gmail.com
.
Respeitosamente,
Alessandro Augusto de
Azevêdo
Alexandre da Silva Aguiar
Edneide da Conceição
Bezerra
Marisa Narcizo Sampaio
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