Reflexões (fragmentadas) com um olho no hoje e no amanhã
A
sensação de que o governo golpista rapidamente poderá destruir o
conjunto de conquistas sociais e direitos alcançados a partir da
ascensão dos governos petistas, em 2003, ao mesmo tempo em que deve
nos colocar de prontidão para uma longa jornada de lutas, deve,
também, nos fazer refletir sobre a própria “facilidade” com que
isso se dá sem que a maioria da sociedade (inclusive aquela parcela
de atingidos) se levante imediatamente. Há a esperança, claro, que
quando os efeitos chegarem diretamente às pessoas elas reagirão,
mas o tempo, na política, é perverso e uma resistência sem forças
num determinado momento implica em maiores dificuldades de reversão
de uma situação no momento posterior.
Assim,
para além das questões mais imediatas, relativas às táticas e
estratégias para o enfrentamento das forças golpistas durante este
ano, incluindo aí, as eleições municipais, e as eleições de
2018, há de se fazer o debate fraterno e lúcido quanto a avaliação
que a esquerda (e, principalmente, o PT) fará de todo esse processo
(especialmente da experiência de governo de 2003 até 2015), no
sentido de captar dele elementos para se repensar caminhos,
estratégias, formas de organização e de imersão nas disputas que
formatam a cultura política de nosso país.
A
experiência de governo petista representou a inclusão (ou
integração) de classes sociais ao processo democrático. Classes
anteriormente descartadas desse processo. Mas, importante demarcar, o
tipo de “inclusão” promovido pelos governos petistas. Não foi
uma “inclusão política”, no sentido de ter produzido maiores
níveis de organização coletiva com impacto nas estruturas de poder
do país.
Ainda
que o Brasil tenha vivenciado nesses últimos anos um maior
alargamento dos espaços decisórios do Estado dos últimos anos, com
a criação de inúmeros conselhos, realização de conferências
setoriais, com a massiva presença de representações da sociedade
civil, essas experiências não alcançaram a rotina das pessoas
comuns. Não houve “liga” entre elas e seus representantes. As
construções que engendraram diretrizes e políticas públicas
inegavelmente mais democráticas e inclusivas não se entranharam na
construção cotidiana das pessoas. Ainda que sejam mais democráticas
que decisões tomadas por burocratas dentro de gabinetes em Brasília,
muito do que foi construído é reflexo da participação da
“militância” e não necessariamente da “população em geral”,
o que nos alerta para a necessidade de uma avaliação criteriosa dos
mecanismos e dos efeitos de uma certa cultura “representativista”
(e, portanto, pouco “direta”) mesmo entre os movimentos sociais
mais empenhados nesse alargamento democrático. Talvez tenhamos tido
um casamento perverso entre a cultura autoritária e refratária à
política entranhada em vastos segmentos sociais e o ethos
“representativista” presente em nossos movimentos sociais.
Por
outro lado, o alargamento dos mecanismos de participação da
sociedade civil em áreas como infraestrutura (onde se concentra boa
parte das relações mais sensíveis aos esquemas de corrupção
recentemente revelados pelas investigações protagonizadas pela
Polícia Federal e Ministério Público), por exemplo, praticamente
inexistiram, possibilitando que estruturas e circuitos de
financiamento do sistema político, historicamente construídos
(desde o período do regime militar), fossem pouco (ou limitadamente)
enfrentados.
Pode
parecer que eu esteja esquecendo que hoje as articulações virtuais,
pelas redes sociais, ocupam o lugar antes ocupado por organismos
“reais” como sindicatos, associações, clubes e partidos. De
fato, as redes sociais já se mostram mais “acolhedoras” das
indignações das pessoas que esses organismos sociais, mas o impacto
dessas redes na ampla circulação de opiniões, pautando meios de
comunicação e iniciativas de pressão sobre instâncias de poder
como o judiciário, os parlamentos e os executivos ainda é, no
mínimo, controverso.
Ainda
não me parece possível indicar mudanças qualitativas na cultura
política da população como um todo, impulsionadas pela presença
desses grupos virtuais como catalisadores de reivindicações e
demandas. Podemos dizer que eles são plataformas utilizadas como
instrumentos para a mobilização dessas reivindicações e demandas,
mas ainda não conseguem soldar expectativas, demandas e
reivindicações e traduzi-las como projetos societais, papel que em
tese seria realizado pelos partidos políticos, mas que, na atual
conjuntura (e parece ser um fenômeno mundial) está longe de se
realizar.
A
inclusão proporcionada pelos governos petistas se deu no âmbito do
acesso a bens materiais e imateriais, pelo viés de políticas
compensatórias e pela inserção na dinâmica da economia, tanto
pelos caminhos da formalidade como da informalidade. Assim, os
governos petistas esticaram o cordão dos direitos previstos na
Constituição de 1988, tornando-a, em muitos aspectos, mais do que
um mero documento. Mesmo não a tendo assinado quando de sua
promulgação, o PT no governo conseguiu dar concretude a alguns de
seus princípios mais caros, muito mais claramente do que os que a
assinaram, quando estiveram no governo até 2002.
Porém,
revelou, também, o quanto há um limite para essa política
“inclusiva” ou o quanto ela é “insustentável” se não for
acompanhada de reformas estruturais, capazes de gerar o financiamento
público e as condições socioeconômicas necessários à sua
consolidação e permanência a despeito das crises cíclicas do
capitalismo.
Uma
inclusão pelo “consumo” que gerou pressões sobre serviços e
aumentou os níveis de expectativas de maior mobilidade em populações
antes deslocada ou fragilmente incorporada ao mercado de consumo.
Expectativas e pressões que o Estado não conseguiu (e ainda não
consegue) responder de maneira eficaz. Os protestos de junho de 2013
são uma primeira demonstração dessas pressões e expectativas que,
geradas sob os governos petistas, anunciam não um esgotamento da
fórmula petista de regulação do capitalismo brasileiros, mas uma
crise global do capitalismo que se revela em nosso país no contexto
dos limites da política econômica petista.
Como
esse processo de ampliação da cidadania “econômica” não se
desenvolveu casado com a ampliação da cidadania “política”,
toda uma massa dessa população “inserida economicamente”,
juntou-se aos setores da classe média que viram-se ameaçados em
algumas de suas benesses ou disputando com esses novos setores o
acesso a bens materiais e imateriais cuja apropriação anteriormente
lhes era mais facilitada. Esse “juntar-se”, aparentemente
contraditório, entre dois segmentos sociais aparentemente distantes
foi possível na medida em que foram canalizados pelo segmento da
direita mais torpe que lhes ofereceu uma contabilidade bem simples:
os recursos que poderiam garantir as melhorias dos serviços públicos
ou financiar as benesses anteriormente existentes correm pelos canos
e ralos da corrupção entranhada no Estado e nas suas relações com
as corporações empresariais, especialmente no tocante ao
financiamento das campanhas eleitorais.
A
direita brasileira combinou em sua ação contra o petismo, por um
lado, a fragilidade da nossa economia frente a crise econômica
global (realçando a ampliação dos gastos públicos com as
políticas redistributivas e de universalização de direitos como
fatores de fragilização do país no enfrentamento da crise) e a
rendição de setores do PT à convivência com mecanismos e
estratégias de manutenção política forjados nos governos
anteriores dos seus adversários, mas incrustados nos circuitos da
governabilidade.
O
fato de dirigentes e parlamentares petistas estarem envolvidos em
esquemas de desvio de recursos para pagamento de dívidas de campanha
(ainda que com a presença de dirigentes e parlamentares de quase
todos os partidos de nosso sistema partidário) ou, apenas ofereceram
a essa narrativa o elemento que faltava para que a direita a
utilizasse para golpear o mandato da Presidenta Dilma, e a
democracia, a partir de movimentos de rua, com apoio midiático e as
bençãos dos corifeus do judiciário. Agora, têm a oportunidade de
implementar um projeto político e social que enterra as conquistas
sociais apontadas pela Constituição de 1988 e “esticadas” pelos
governos petistas.
As
esquerdas (e o PT principalmente) terão uma boa (e extensa) pauta
para consumo dos debates nos próximos anos. Nessa pauta estão
velhas questões. Outras novas. E outras que aparentemente já
estavam superadas, mas a longa e intensa participação em governos e
parlamentos as recolocaram. Aqui vai o que me ocorre,
momentaneamente:
a) A
discussão acerca de como é possível participar do jogo
político-eleitoral montado pela cultura elitista e corrupta
dominante, sem que se confunda com essa cultura, nem se vincule aos
mecanismos que ela engendrou e que se tornaram parte integrante do
sistema político-eleitoral. Sem reproduzir seus mecanismos espúrios
e se deixar tomar por estratagemas, que até podem dar sustentação
política a governos comprometidos com políticas socialmente
redistributivas e de universalização de direitos, mas a um preço
ético e moral cuja fatura, cedo ou tarde, aparecerá. Como apareceu.
Aqui, temos a pauta de qual Reforma Política o PT e as esquerdas
devem defender não apenas “para fora”, mas “para dentro” de
si.
b) O
retorno ao diálogo aberto com a população, através de uma rede
flexível e horizontalizada de múltiplos formatos comunicacionais,
sem abrir mão do cara-a-cara, do olho-no-olho. As grandes
mobilizações de rua têm impacto visual para os que as observam,
mas a recente entrada em cena da direita ocupando as ruas em formato
semelhante intensifica a necessidade de se fazer o debate político
de forma mais “entranhada” nos diversos espaços sociais, de
caráter mais pedagógico e dialógico. Não se deve confundir
“convencer” com “converter”. Aqui, temos a pauta da Reforma
Democrática das estruturas partidárias, mas também da política de
comunicação e discussão política com a sociedade a ser
empreendida em um formato sem apoio oficial, e que não se resume a
“atos massivos” de rua, mas no diálogo aberto e capilarizado nos
vários segmentos sociais.
c) Em
face do cenário de crise econômica mundial e do quadro político
que se desenha a partir do golpe, com a consolidação de um
agrupamento de centro-direita soldado pelo projeto a ser implementado
pelo governo golpista, a esquerda deve iniciar desde já uma
discussão sobre qual o projeto social (considerando suas dimensões
política, econômica e cultural) que deverá balizar alianças
sociais e políticas, para o próximo período.
E isso é uma tarefa de
toda a esquerda e não apenas de um ou outro partido, de modo que será
necessário um debate fraterno, consistente, e autocrítico. Sem
isso, melhor fechar a bodega e ver a banda passar.
Comentários
Abraço fraterno,
Edilson.
Abraço fraterno,
Edilson.