Chavez e as chaves da política latinoamericana: duas visões.

Hoje, dia da poesia, a lationamérica está em voga como nunca. Além de um papa argentino, o povo venezuelano enterra o seu presidente, o qual figurará em compêndios de livros de história nas próximas edições como um dos mais importantes governantes latinoamericanos de toda a história (esperemos que no âmbito da cristandade, o novo papa consiga representar algo parecido)...quando inflamados discursos se põem contra e a favor de alguém, isso já lhe dá a condição de referência básica para se compreender uma época, um lugar ou um povo.
É o que fazemos agora, publicando dois artigos: um que aponta reflexões sobre os caminhos da América Latina importância de Chavez para a consolidação de um certo caminho político e econômico na Venezuela (com repercussões nos processos de outros países latinoamericanos), o outro "detonando-o" como caudilho (escrito pelo renomado liberal Vargas Llosa). Para quem gosta de assistir um bom debate (como é o meu caso) é uma delícia ver os dois gladiadores, ainda que ambos não tenham tido a intenção de escrever para se contrapor um ao outro. Mas é quase como se fosse.

AMÉRICA LATINA: A TRANSIÇÃO INTERDITADA
Por Saul Leblon

Se existe aprendizado em política, a épica mobilização da sociedade venezuelana nos últimos dias não deve ser tratada como simples efeméride. Muitos gostariam de restringi-la assim, nos limites de um cortejo emotivo. Adeptos dessa tese conveniente não perfilam apenas no campo conservador. O que se viu e se vê em Caracas impõem-se, no entanto, como uma biblioteca de reflexões estratégicas para os socialistas.
As homenagens póstumas a Hugo Chávez calam e imobilizam aqueles que há meses festejavam a mórbida contagem regressiva. Ruminava na alma conservadora a esférica certeza de que a morte do líder bolivariano levaria à implosão quase instantânea do regime, iniciado há 14 anos com a primeira de uma série de vitórias eleitorais.
Não foi esse o recado do luto vermelho. Ele recobre a Venezuela desde a 3ª feira passada com um manto de dor. Mas também de prontidão política. E de impressionante adesão a um projeto, frequentemente desqualificado como simples petropopulismo pela mídia dominante.
Partidos e movimentos progressistas de todo o continente tem algo a aprender com o avassalador amálgama que tomou conta das ruas venezuelanas. A impressionante vitalidade daquilo que se imaginava menos abrangente e mais frágil do que tem se mostrado cobra um espaço de discussão na agenda progressista.
A entrevista do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães à Carta Maior, feita por Dario Pignotti, vai nessa direção. Pontua questões cruciais ensejadas por um movimento denso e abrupto, como costumam ser as rupturas de ciclo histórico.
Por exemplo. Se os acontecimentos na Venezuela suscitarem no conservadorismo a percepção de que a via eleitoral ficou estreita demais para retomar o poder, que contrapesos poderiam - deveriam - ser acionados?
O embaixador Pinheiro Guimarães conhece bem as interações da luta geopolítica e não titubeia: exorta Dilma e Cristina a formarem os alicerces de um muro antigolpista na região. É um primeiro indicativo. A integração latino-americana agiganta-se em importância como vigia e fiador da nova fronteira da soberania no continente: a construção da justiça social.
Há mais que isso, porém. Ao abordar a necessidade de um aparato popular para defender os avanços e conquistas acossados, Samuel Pinheiro resvala no tema tabu da luta socialista no continente. Não qualquer continente. Aquele em que a insurreição armada de Che Guevara fracassou, em outubro de 1967, na Bolívia. Aquele em que a via democrática de Salvador Allende para o socialismo foi massacrada, em setembro de 1973, no Chile. Aquele em que , desde então, o socialismo passou a figurar no discurso progressista hegemônico - o que não implica negligenciar as posições minoritárias à esquerda dele - como a margem de um rio desprovida de pontes e embarcações de acesso.
Revezes históricos, seguidos de um ciclo de regressividade neoliberal, achataram o debate socialista na região. Lubrificaram o acanhamento de uns e a rendição mercadista de outros. Reduziu-se o socialismo a um horizonte imaginário pouco, ou nunca, articulado às ações da realidade presente.
A tese da radicalização da democracia política ocupou esse espaço como uma legenda-ônibus, recheada da difusa intenção de erguer pontes sobre um vazio estratégico. Que está prestes a completar 40 anos. Em 11 de setembro de 1973, o general Augusto Pinochet provou de forma sangrenta que a democracia representativa não comportava as esperanças de uma transição pacífica para o socialismo. Ao contrário do que preconizava a Frente Popular liderada pelo PS e pelo PC chileno.
O que aconteceu no Chile, seu custo em vidas e acuamento histórico, desarmou a discussão sobre a transição para o socialismo latino-americano. A coragem e a dignidade inexcedíveis de Salvador Allende e a de milhares de homens e mulheres que, a exemplo dele, perderam a vida e entes queridos no golpe, não estão em questão.
Mas o debate sobre os erros do processo e, sobretudo, a busca de alternativas, devem ser retomados à luz da nova realidade recortada por um duplo divisor: a emergência de um colar de governos progressistas na região e o desmanche planetário da ordem neoliberal.
O governo da Frente Popular de Allende ensejou certa prostração do Estado e da sociedade diante da reação beligerante dos interesses que nunca toleraram o seu projeto socialista. Allende era o presidente de um governo minoritário no Congresso e na Câmara. Invariavelmente traído por um centro democrata-cristão, que nunca hesitou em pregar os derradeiros pregos em seu caixão. Allende endossou no seu cálculo político dois mitos: a propalada solidez de 100 anos de democracia congressual chilena e a decantada postura profissional do Exército do país. Foi fiel as suas ilusões. Desestimulou e proibiu a organização de milícias operárias de autodefesa. Prestigiou e nomeou para seu ministério generais "profissionais" - um deles, Augusto Pinochet, era seu chefe do Exército quando deu o golpe. Sujeitou-se ao desgaste do jogo parlamentar demitindo ministros e desautorizando iniciativas sob exigência do Congresso. Finalmente, cedeu em questões nevrálgicas, como a da mídia, ao liberar 155 rádios do guarda-chuva da cadeia nacional.  Permitiria assim a difusão encorpada de uma campanha de insatisfação popular - em boa parte assentada na escassez deliberada de produtos - que daria o lastro 'popular' ao golpe.
Sabe-se que o processo chileno foi um dos temas frequentes das conversas entre Chávez e Fidel Castro ao longo da última década.  Faz sentido. Nenhuma outra experiência de governo popular levou tão a sério o desafio de dilatar as fronteiras da democracia participativa, quando a revolução bolivariana na Venezuela.
A consistência dessa arquitetura tem um encontro com a hora da verdade a partir de agora.
Por certo há lacunas.  A inexistência de um partido enraizado e capaz de comandar o processo na ausência de Chávez é uma delas. Mas a prontidão e a abrangência do que se viu e se vê nas ruas de Caracas nestes dias enseja um otimismo realista.  No mínimo, convoca o amplo leque de forças progressistas do continente a retomar o debate adormecido da transição para o socialismo.
À luz dos acontecimentos presentes e futuros na Venezuela, trata-se de recolocar na ordem do dias questões da teoria e da prática de uma transição que o ciclo de Chávez tirou do baú do esquecimento latino-americano.

A morte do caudilho’, por Vargas Llosa

PUBLICADO NO ESTADÃO DESTE DOMINGO

MARIO VARGAS LLOSA

O comandante Hugo Chávez Frías pertencia à robusta tradição dos caudilhos que, embora mais presentes na América Latina que em outras partes, não deixaram de se assomar a toda parte, até em democracias avançadas, como a França. Ela revela aquele medo da liberdade que é uma herança do mundo primitivo, anterior à democracia e ao indivíduo, quando o homem ainda era massa e preferia que um semideus, ao qual cedia sua capacidade de iniciativa e seu livre-arbítrio, tomasse todas as decisões importantes de sua vida.

Cruzamento de super-homem e bufão, o caudilho faz e desfaz a seu bel prazer, inspirado por Deus ou por uma ideologia na qual, quase sempre, se confundem o socialismo e o fascismo - duas formas de estatismo e coletivismo - e se comunica diretamente com seu povo mediante a demagogia, a retórica, a espetáculos multitudinários e passionais de cunho mágico-religioso.

Sua popularidade costuma ser enorme, irracional, mas também efêmera, e o balanço de sua gestão, infalivelmente catastrófico. Não devemos nos impressionar em demasia pelas multidões chorosas que velam os restos de Hugo Chávez. São as mesmas que estremeciam de dor e desamparo pela morte de Perón, de Franco, de Stalin, de Trujillo e as que, amanhã, acompanharão Fidel Castro ao sepulcro.

Os caudilhos não deixam herdeiros e o que ocorrerá a partir de agora na Venezuela é totalmente incerto. Ninguém, entre as pessoas de seu entorno, e certamente em nenhum caso Nicolás Maduro, o discreto apparatchik a quem designou seu sucessor, está em condições de aglutinar e manter unida essa coalizão de facções, de indivíduos e de interesses constituídos que representa o chavismo, nem de manter o entusiasmo e a fé que o defunto comandante despertava com sua torrencial energia nas massas da Venezuela.

Uma coisa é certa: esse híbrido ideológico que Hugo Chávez urdiu chamado revolução bolivariana ou socialismo do século 21, já começou a se decompor e desaparecerá, mais cedo ou mais tarde, derrotado pela realidade concreta: a de uma Venezuela, o país potencialmente mais rico do mundo, ao qual as políticas do caudilho deixaram empobrecido, dividido e conflagrado, com a inflação, a criminalidade e a corrupção mais altas do continente, um déficit fiscal que beira a 18% do PIB e as instituições - as empresas públicas, a Justiça, a imprensa, o poder eleitoral, as Forças Armadas - semidestruídas pelo autoritarismo, a intimidação e a submissão.

Além disso, a morte de Chávez coloca um ponto de interrogação na política de intervencionismo no restante do continente latino-americano que, num sonho megalomaníaco característico dos caudilhos, o comandante defunto se propunha a tornar socialista e bolivariano a golpes de talão de cheques. Persistirá esse fantástico dispêndio dos petrodólares venezuelanos que fizeram Cuba sobreviver com os 100 mil barris diários que Chávez praticamente presenteava a seu mentor e ídolo Fidel Castro? E os subsídios e as compras de dívida de 19 países, aí incluídos seus vassalos ideológicos como o boliviano Evo Morales, o nicaraguense Daniel Ortega, as Farc colombianas e os inúmeros partidos, grupos e grupelhos que por toda a América Latina lutam para impor a revolução marxista?

O povo venezuelano parecia aceitar esse fantástico desperdício contagiado pelo otimismo de seu caudilho, mas duvido que o mais fanático dos chavistas acredite agora que Maduro possa vir a ser o próximo Simon Bolívar. Esse sonho e seus subprodutos, como a Aliança Bolivariana para as América (Alba), integrada por Bolívia, Cuba, Equador, Dominica, Nicarágua, San Vicente e Granadinas, Antígua e Barbuda, sob a direção da Venezuela, já são cadáveres insepultos.

Nos 14 anos que Chávez governou a Venezuela, o preço do barril de petróleo ficou sete vezes mais caro, o que fez desse país, potencialmente, um dos mais prósperos do planeta. No entanto, a redução da pobreza nesse período foi menor que a verificada, por exemplo, no Chile e no Peru no mesmo período. Enquanto isso, a expropriação e a nacionalização de mais de um milhar de empresas privadas, entre elas 3,5 milhões de hectares de fazendas agrícolas e pecuárias, não fez desaparecer os odiados ricos, mas criou, mediante o privilégio e o tráfico, uma verdadeira legião de novos ricos improdutivos que, em vez de fazer progredir o país, contribuiu para afundá-lo no mercantilismo, no rentismo e em todas as demais formas degradadas do capitalismo de Estado.

Chávez não estatizou toda a economia, como Cuba, e nunca fechou inteiramente todos os espaços para a dissidência e a crítica, embora sua política repressiva contra a imprensa independente e os opositores os reduziu a sua expressão mínima. Seu prontuário no que respeita aos atropelos contra os direitos humanos é enorme, como recordou, por ocasião de seu falecimento, uma organização tão objetiva e respeitável como a Human Rights Watch.

É verdade que ele realizou várias consultas eleitorais e, ao menos em algumas delas, como a última, venceu limpamente, se a lisura de uma eleição se mede apenas pelo respeito aos votos depositados e não se leva em conta o contexto político e social no qual ela se realiza, e na qual a desproporção de meios à disposição do governo e da oposição era tal que ela já entrava na disputa com uma desvantagem descomunal.

No entanto, em última instância, o fato de haver na Venezuela uma oposição ao chavismo que na eleição do ano passado obteve quase 6,5 milhões de votos é algo que se deve, mais do que à tolerância de Chávez, à galhardia e à convicção de tantos venezuelanos que nunca se deixaram intimidar pela coerção e as pressões do regime e, nesses 14 anos, mantiveram viva a lucidez e a vocação democrática, sem se deixar arrebatar pela paixão gregária e pela abdicação do espírito crítico que o caudilhismo fomenta.

Não sem tropeços, essa oposição, na qual estão representadas todas as variantes ideológicas da Venezuela está unida. E tem agora uma oportunidade extraordinária para convencer o povo venezuelano de que a verdadeira saída para os enormes problemas que ele enfrenta não é perseverar no erro populista e revolucionário que Chávez encarnava, mas a opção democrática, isto é, o único sistema capaz de conciliar a liberdade, a legalidade e o progresso, criando oportunidades para todos em um regime de coexistência e de paz.

Nem Chávez nem caudilho algum são possíveis sem um clima de ceticismo e de desgosto com a democracia como o que chegou a viver a Venezuela quando, em 4 de fevereiro de 1992, o comandante Chávez tentou o golpe de Estado contra o governo de Carlos Andrés Pérez. O golpe foi derrotado por um Exército constitucionalista que enviou Chávez ao cárcere do qual, dois anos depois, num gesto irresponsável que custaria caríssimo a seu povo, o presidente Rafael Caldera o tirou anistiando-o.

Essa democracia imperfeita, perdulária e bastante corrompida, havia frustrado profundamente os venezuelanos que, por isso, abriram seu coração aos cantos de sereia do militar golpista, algo que ocorreu, por desgraça, muitas vezes na América Latina.

Quando o impacto emocional de sua morte se atenuar, a grande tarefa da aliança opositora presidida por Henrique Capriles será persuadir esse povo de que a democracia futura da Venezuela terá se livrado dessas taras que a arruinaram e terá aproveitado a lição para depurar-se dos tráficos mercantilistas, do rentismo, dos privilégios e desperdícios que a debilitaram e tornaram tão impopular.

A democracia do futuro acabará com os abusos de poder, restabelecendo a legalidade, restaurando a independência do Judiciário que o chavismo aniquilou, acabando com essa burocracia política mastodôntica que levou à ruína as empresas públicas. Com isso, se produzirá um clima estimulante para a criação de riqueza no qual empresários possam trabalhar e investidores, investir, de modo que regressem à Venezuela os capitais que fugiram e a liberdade volte a ser a senha e contrassenha da vida política, social e cultural do país do qual há dois séculos saíram tantos milhares de homens para derramar seu sangue pela independência da América Latina.

TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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