Pesquisador que só "Lattes" não "morde", por Thiago Rocha
Recebi o texto abaixo por mensagem eletrônica e achei muito interessante o posicionamento do autor dado que ele expressa uma opinião não majoritária em muitos programas de pós-graduação, abrigo de muitos professores que pensam a ciência mais como exercício da própria vaidade, do que como parte de um processo formativo mais amplo, que articula o ensino e a extensão e se joga ao mundo.
Muitos desses, de forma velada, sugerem que o ensino na graduação é "menor" que o ensino na pós-graduação. E a extensão é coisa para "ativistas" ou para quem gosta de "trabalhar com pobre" e a esses não cabe lugar no Olimpo dos PHDEUSES...
Por isso que, de quando em vez, na rotina de reuniões das instâncias acadêmicas, presenciamos a defesa de que esses "professores pesquisadores" (sim, normalmente, se introduz o adjetivo para enfatizar essa qualidade diferenciada) sejam cada vez mais desobrigados com outras atividades acadêmicas e se dediquem apenas à pesquisa, quando foram aprovados em concurso público, originalmente, para serem, prioritariamente, formadores em nível de graduação.
As opiniões expostas pelo autor convoca todos (professores integrantes ou não de programas de pós-graduação) a realizarem uma auto-imersão e pensarem que tipo de universidade se está construindo sob uma cultura burocrática e mercantilista de produção científica e, dentro ou fora desses programas, tentar um outro formato, uma outra cultura, um outro ethos acadêmico, mais "sistêmico" (perceber as articulações entre as várias instâncias do fazer acadêmico) e menos "feudal" (olhar para a própria especialidade). Se os que são pagos para "pensarem" o mundo, não forem capazes de pensarem o próprio fazer e o projeto que lhe organiza o exercício e a rotina desse trabalho fundamental, estamos mal, muito mal...
Abaixo o texto, abraço a todos e todas.
"O título do texto é, naturalmente, bastante provocador. Talvez tão provocador quanto julgo aberrante essa lógica da produção industrial e narcisisticamente compulsiva que ronda a academia e que quase que obrigatoriamente acaba sugando aqueles que de alguma forma se envolvem com ela. É a tal produção pela produção. Ou melhor, a produção para a produção de um ‘bom’ currículo – gordinho, recheado, robusto – para o pesquisador. O compromisso com o conhecimento, nesse caso, muitas vezes vai pro ‘beleléu’. Aí vira essa guerra de quem publica mais, em quais revistas que possuem quais pontuações, em parceria com quais ‘top-tops’ etc. E da guerra, infelizmente, se faz a mercantilização, o comércio. Isso mesmo. Um comércio antiético, onde a única lei que importa é a da quantidade pela quantidade, da infinita acumulação de capital; em suma, uma prática extremamente ‘antiacadêmica’, se levarmos em conta o que a academia deveria ser (para quê ela nasceu) e o que ela se tornou de verdade (como ela está sendo ‘enterrada’).
Não que eu esteja colocando a ‘culpa’ de tal lógica inteiramente no capitalismo – assim eu acabaria dando espaço para me chamarem de paranoico, raso e imprudente. No entanto, é a ele que, em última instância, esse sistema serve atualmente – quem ele imita e por quem ele, por tabela, se limita –, e isso considero ser razoavelmente difícil de negar. Hannah Arendt fez um comentário bastante interessante sobre a origem da academia na Grécia Antiga e o seu princípio motivador: “assim como a libertação do trabalho e das preocupações com a vida eram pressupostos necessários para a liberdade da coisa política, a libertação da política tornou-se pressuposto necessário para a liberdade da coisa acadêmica” (O que é política, p. 63); neste caso, “ao mundo das opiniões mentirosas e do falar enganador devia ser oposto um mundo contrário da verdade e do falar adequado à verdade; à arte da retórica, a ciência da dialética” (pp. 64-65). Mas aqui nesse ponto eu me pergunto: será que alguma vez a academia conseguiu ser isso que ela tanto quis ser? Acredito que não. Pelo menos, não nesses termos.
O fato é que de uma forma ou de outra a ‘ciência’ – de maneira bem geral – sempre esteve atrelada a algum poder específico – religioso, político etc. – até se tornar, ela mesma, um poder próprio por excelência, o poder da ‘verdade’ – a verdade que leva o carimbo de ‘cientificamente comprovada’, a verdade revelada por aqueles que compreendem o mundo muito melhor do que os meros mortais que se deliciam com ‘as opiniões mentirosas’ que rondam por aí e que contaminam o mundo. Mas será que já conseguimos mesmo nos desvincular totalmente da ‘arte da retórica’ para enfim chegar a uma verdadeira ‘ciência da dialética’, por exemplo? Sinceramente, acho que não – ou melhor, quando isso acontece, é meio que contra nossa vontade, quase um ‘erro de cálculo’ nos termos de Rancière. Bakhtin já dizia que todo conhecimento já nasce para ser superado, e que, por isso, é sempre mais interessante (dialeticamente produtivo, digamos) possuir adversários qualificados do que estar rodeado de ‘aliados’ medíocres – nada mais coerente.
Mas o que dizer do evidente controle político que determinados grupos (‘correntes de pensamento’) fazem dos seus respectivos programas para engessar a ‘batalha dialética’ e, assim – ao boicotar ao máximo as visões contrárias às suas –, estabelecer a sua verdade como hegemônica? O que dizer dessa aberração que transforma a ciência em dogma, em fé? Será que essa prática está realmente preocupada com o conhecimento em si, ou apenas com o ego dos que obtêm o controle político da ‘verdade’ naquele determinado espaço? Outro dia ouvi um relato sobre uma professora que em plena sala de aula (numa pós-graduação!) soltou a seguinte pérola: “eu não sei o que é que os anarquistas e os pós-modernos ainda estão fazendo na academia; já que eles a criticam tanto, não deveriam estar lá”. É mole? Seria cômico se não fosse trágico. E o pior é que está cheio de gente por aí que pensa de modo parecido, por mais que poucos tenham coragem de falar tal aberração em público.
A capitalização do conhecimento
E é aqui nesse ponto que a aberração política é complementada pela aberração mercadológica. Afinal, sinceramente, qual é a motivação principal de um pesquisador quando faz (e publica) um artigo, por exemplo? Idealmente, não temos dúvida de que deveria ser o compromisso com o conhecimento, a crença de que aquilo de alguma forma trará uma contribuição clara e efetiva para as discussões daquele campo. Mas infelizmente sabemos que muitas vezes não é exatamente isso que acontece. Normalmente publicamos porque temos que publicar: porque o programa ao qual estamos vinculados nos cobra (e ele quer e precisa pontuar cada vez mais porque o governo e suas agências de financiamento também lhe cobra isso); porque queremos e precisamos ‘fazer’, rechear, nosso currículo para podermos ter uma boa vitrine de pesquisador quando formos concorrer a uma vaga num concurso, por exemplo – ou para manter nossa posição intocada em alguma instituição; e porque, claro, também é bom para o ego saber que publicamos tantos artigos em tempo recorde nas melhores revistas do Brasil e do mundo na nossa área – o que rapidamente fará de nós uma ‘referência’ naquele campo do conhecimento. E é aqui que a lógica do quê se publica se transforma na do quanto se publica; é aqui que a qualidade acaba se vendendo ao mero aspecto quantitativo, o que proporciona a formação de um grande mercado (às vezes, máfia mesmo) de publicação.
Não estou aqui criticando simplisticamente o fato de se publicar. Muito longe disso. Afinal, como dizia Sérgio Sampaio, “um livro de poesia na gaveta não adianta nada; lugar de poesia é na calçada”; da mesma forma, lugar de artigos, de ideias, de descobertas científicas é nos livros, nas revistas, e, mais ainda, idealmente, na calçada também. O problema abordado é o como e o para quem se publica. No primeiro caso, o grande contrassenso é justamente a ‘máfia’ inescrupulosa que muitas vezes se cria para poder publicar cada vez mais. E minha crítica, naturalmente, está direcionada a esses casos (absolutamente reais). Um exemplo são as panelinhas do tipo “pô, bicho, bote meu nome aí no seu artigo, que quando eu fizer o meu eu coloco seu nome também”. Ou então quando o cara publica o mesmo artigo várias vezes mudando apenas algumas palavras em um ou outro parágrafo. Ou ainda quando o cidadão se aproveita do seu título acadêmico (de doutor, mais comumente) e apenas ‘assina’ artigos de/com outros (que não possuem aquela qualificação exigida por tal ou qual revista) para que o artigo possa ser aceito e publicado – muitas vezes o cara não sabe nem o que está escrito no ‘seu’ próprio texto.
Ou também quando o professor dá uma disciplina na faculdade, pede que cada aluno escreva um artigo (publicável, claro) como avaliação e no final ele ‘corrige’, assina junto com os estudantes e engorda seu Lattes em uns 30 ou 40 quilos numa garfada só. Aí depois – o que é ainda mais bizarro – esse cidadão vai para o MSN (hoje em dia, Facebook e Twitter) e estampa o resultado do seu ‘sucesso’: “30 artigos publicados em 2011”. Parabéns para você, meu caro. Mas realmente não é nesse tipo de ciência que eu, particularmente, acredito. Só que o governo e as universidades parecem crer e estimular isso mais que ninguém, e de maneira extremamente superficial. Aí, no fim das contas, acabam ‘punindo’ e ridicularizando aqueles que não seguem tanto essa lógica, colocando-lhe uma estampa pública de ‘produção insuficiente’. Nesse caso, não importa mais nada – rendimento em sala de aula, projetos paralelos (de extensão, inclusive), repercussão de publicações anteriores –, pois os números falam por si: e assim o mercado é fortalecido – capitalismo selvagem.
No que diz respeito ao ‘para quem’ se publica, o problema não é menos grave, já que poucas pesquisas conseguem de fato chegar às ‘calçadas’. Ao contrário, as discussões são extremamente elitizadas, fechadas em si mesmas, e para os mesmos poucos que debatem num ambiente quase que privado, seleto. Até porque, a nossa grande crença (arrogância) na academia é achar que ‘intelectual’ só pode falar com/para ‘intelectual’; que ‘especialista’ só consegue ser compreendido devidamente por outros ‘especialistas’ – afinal, quem de nós quer perder tempo explicando nossas teorias mirabolantes para pessoas tão mediocremente educadas? E ponto final.
Mas aí você vai num congresso que te cobra R$ 400 de inscrição – porque nesses eventos o que vale mais é a sua fama e o seu apelo, assim como quem determina o preço de uma roupa é o simbolismo da marca e não a qualidade do produto em si – e sai de lá com a sensação de que (pensando mercadologicamente) as discussões não valeram mais do que R$ 50, dado o grau de repetitividade e as apresentações em escala industrial, com pouco filtro de qualidade e quase nenhum tempo disponível para um debate realmente qualificado – sem falar que, como o que vale mesmo é apenas apresentar e publicar, muitas vezes o cidadão espera a sua vez, fala o que tem que falar no seu GT e vai embora; e as coisas morrem ali mesmo; afinal, pontuar no Lattes é o que importa. E é dessa forma, dada a grande demanda (pois cada vez mais gente entra no ‘mercado acadêmico’), que o negócio de congressos, colóquios e afins está em constante crescimento, devido ao seu alto grau de lucratividade – financeira e, claro, ‘lattesiana’, já que organizar eventos também é uma ótima forma de ‘pontuar’.
É por isso que, na minha mera opinião, pesquisador que só ‘Lattes’ não ‘morde’ – ele apenas ‘engole’ e ‘vomita’ essa lógica. Não morde porque já foi mordido por um sistema (perverso) que faz com que em muitos casos o autor visto pela vitrine do Lattes pareça muito mais competente do que o que ele é de verdade; que pareça contribuir mais para o seu campo de estudo do que de fato contribui. Não morde, em suma, porque suas pesquisas são meramente funcionais, feitas apenas para seu próprio benefício, o de ter um currículo ‘invejável’, e não para de alguma forma ajudar a melhorar o mundo, sei lá, ou por qualquer outra motivação menos narcísica. E esse é um dos grandes problemas da academia atualmente: em vez de estimular a qualidade das produções através do pensamento crítico, por conta dessa lógica ela acaba contrariamente contribuindo para o conformismo, fazendo com que o indivíduo que entra na universidade com vontade de produzir aquilo em que ele acredita saia preocupado apenas em ‘engordar’ o seu currículo Lattes.
Mais uma vez – só para razoavelmente me precaver de determinadas críticas –, não sou contra o currículo, de forma alguma – até porque é absolutamente importante e necessário organizar, categorizar e publicizar aquilo que a gente faz (inclusive para prestar contas para o governo e a sociedade, que é quem nos financia): o que eu particularmente não engulo, por mais mastigada que essa prática já esteja, é essa lógica mercantil que se apropria cada vez mais do currículo por meio de um uso vazio e irresponsável. Daí que, da mesma forma que utilizamos o termo ‘academia’ para descrever o lugar que frequentamos para malhar o corpo, acabamos, assim, mesmo que inadvertidamente, usando a academia (através do Lattes) apenas para ‘malhar’ o ego. Não que todos sejam assim, obviamente; mas com certeza existem muitos; muitos mais do que gostaríamos que existissem. Ou seja, tudo isso – independente do grau de ocorrência e dos meus possíveis exageros críticos –, portanto, não se trata de uma grande aberração? Para mim, a resposta está mais que clara…
Thiago Rocha é graduado em Jornalismo pela UFS e mestrando no programa de Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA. Como jornalista, foi editor e colunista político do Caderno Municípios do Jornal Cinform e um dos 20 brasileiros selecionados pela Embaixada Americana para estudar, observar e cobrir as eleições de 2008 através de um programa realizado pela Universidade Estadual da Carolina do Norte. Já no campo acadêmico, tem experiência nos estudos de comunicação política, Internet e mobilização social, e em 2010 foi o vencedor do Prêmio Franklin Delano Roosevelt na categoria monografia com um estudo sobre a utilização das novas mídias por parte do movimento Organizing for America, de Barack Obama."
Comentários
um abração
Kelly