Uma crônica de Armando Nogueira para animar minha 4a. feira rubro-negra

Hoje, meu Mengão terá um encontro com o Corinthians de São Paulo que está sendo celebrado por toda a crônica esportiva do país como um dos primeiros grandes confrontos do ano. De um lado, o alvinegro paulista que estabeleceu como meta principal a conquista da Libertadores para coroar seu centenário. De outro lado, o Mengão tentando sair de uma inesperada e dolorosa crise interna que será capaz de comprometer todo o ano, depois de uma gloriosa conquista ano passado.
O último jogo entre esses dois clubes do qual tenho saborosas lembranças, é cortejado por muitos como um dos mais memoráveis por causa de um gol do Romário. Um gol antológico que no youtube já atingiu a marca de mais de 161000 exibições (ver em http://www.youtube.com/watch?v=cr7gwaW4zFU&NR=1). Esse gol, de tão lindo, tornou-se a referência para quem quer lembrar do jogo, válido pelo Torneio Rio-São Paulo de 1999.
Dias após o jogo, li uma crônica do Armando Nogueira que, para mim, sintetizou o que aconteceu naquele pedaço de chão verde naquela tarde de domingo. Li numa Folha de São Paulo e para guarda-la, fiz contato com o próprio Armando Nogueira (por email, claro) para que me enviasse uma cópia da crônica. Ele, gentilmente, me enviou, abrindo sua mensagem com um "Caro Caicó". Mas depois de 3 mudanças residenciais e a perda de HDs dos computadores já possuídos, eu já não dispunha da cópia digital e não conseguia encontrar a cópia impressa.
Dias atrás, face a notícia da morte do jornalista, resolvi registrar minha admiração pelo seu estilo publicando a tal crônica, mas não a encontrei. Este fim de semana, minha companheira casualmente a encontrou e, agora, entendo ser oportuno sua publicação, com a autorização transcendental do autor.

PELA PORTA DOS FUNDOS
Mas, o que é aquilo, meus amigos? O personagem me entra na área, pela linha de fundo, como se fosse um penetra. Não cumprimenta ninguém. Podia perfeitamente dizer: bom dia, "seu" Amaral. Ultrapassa-o, zen, como um irmão budista. Silencioso, como um frade trapista. Desborda-o, gentilmente, com um drible mágico. Trata-o como um ponto morto. Avança com a bola atada aos dois pés, numa coreografia de equilíbrio e astúcia que ambos executam, há séculos, tocando de ouvido. Nem parece que leva nos ombros o peso da gravidade, símbolo de todas as forças que conspiram contra o movimento.
Passa-se uma eternidade e o processo não culmina. Agora, o personagem infiltra-se, qual um peixe, por entre as águas da linha de fundo e um coral de pernas. Leva, atada aos pés, a bola, enfeitiçada. Por que terá ele escolhido trajeto tão árduo? Caminho sem horizonte. Só que pode ser capricho do instinto. Vejo-o tão colado à trave direita que, certamente, não ousará o chute sem ângulo. Pois em vez do passe, ele prefere mesmo o chute inimaginável. A bola, então, nem discute: vai em frente e, repassada em doce efeito, entra no gol, leve como uma pluma.
Quem, além dele, seria capaz de tramar o que ele tramou, ali, naquela nesga de chão? Que eu saiba, dois: um, que já morreu e virou santo e o outro que está por aí, vivo e devidamente imortalizado.
Mas, por favor, não fiquemos na pura e simples sagração do gol. Ato isolado. A obra-prima, pra ser eterna, jamais será um mero desfecho. Transcorre, seguindo uma partitura rendilhada de cadências, de fintas, de dribles, de contra-pés. O ato da criação, nele, conterá, sempre, começo, meio e fim. A sina desse moço transcende a simples centelha do artilheiro. Ele não é de fazer gol com restos de bola. O gol dele tem sido e há de ser, sempre, fruto de um processo, de um delírio, inspiração divina.
Muito desconfio de uma coisa: antes de haver futebol, a bola já pressentia, sorrindo, seu encontro com Romário.

Armando Nogueira

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