O Evangelho segundo o TACEJA
O período da chamada semana santa sempre me traz à memória o período em que brinquei de fazer teatro, quando estudava no glorioso CEJA, escola pública onde existia o TACEJA – Teatro de Amadores do Centro Educacional José Augusto. Na época, o grupo era dirigido por “Pedão”, nascido Pedro Idelfonso, aluno da escola, mas com idade e experiência em teatro que lhes dava autoridade de ser o diretor do grupo.
Todo ano, quando se aproximava o tempo da semana santa, o TACEJA reunia-se para os ensaios e as apresentações da “Paixão de Cristo” (como nas terras do Coronel Justino Bento da Cruz, que lemos em “Briga na procissão”, poema de Chico Pedroza já postado aqui - ver: http://quixotesforrosebaioes.blogspot.com/2009/04/briga-na-procissao-de-chico-pedrosa.html). A trupe circulava por quase todo o Seridó e ainda havia eventuais apresentações em cidades próximas na Paraíba.
Ao longo dos anos, colecionei, com maior ou menor fidelidade aos fatos, estórias (vividas por mim mesmo ou de “ouvir falar” dos mais antigos no grupo) em torno das encenações da vida e morte de Jesus Cristo pelo TACEJA. Aliás, já conclamei através deste espaço ao meu queridíssimo Ronaldo Carlos que me enviasse (ou ele mesmo publicasse) algumas dessas histórias que, pela boca dele, são bem mais saborosas do que pelas minhas mãos. A provocação continua de pé.
De qualquer maneira, aqui exponho uma delas. Para preservar identidades, deixar fluir minha verve literária e não ser traído pela memória, preservarei nomes e (creio) poderei “inventar” alguns detalhes, mas, como diria Antônio Biá (delicioso personagem de “Narradores de Javé”) e meu amigo Bosco Araújo, tem narrativas que ficam melhores com umas pitadas de imaginação. A realidade, por vezes, é muito chata.
Vamos a uma dessas estórias...
Naqueles dias, por razões desconhecidas, mas imagináveis, o ator que fazia o papel do Cristo não cruzava seus bigodes com o sonoplasta do grupo. Para alguns mais chegados, o intérprete do fundador do cristianismo dizia que as atitudes do sonoplasta quando chegávamos em outras cidades não era lá muito recomendável, afinal, ele não perdia a oportunidade de antes dos espetáculos, dar uma saidinha e fazer o reconhecimento da área etílica onde estávamos. Isso, dizia o protagonista de nossa peça, punha em risco a imagem do grupo e da escola, afinal, tínhamos jovens menores de idade no grupo e, portanto, não “pegava bem” para a maior escola pública do Estado demonstrações de práticas dessa natureza no seio do seu grupo teatral. Além do que, por vezes, o rapaz voltava um tanto “quente” dessas visitas aos bares diretamente para o trabalho de sonoplastia durante a apresentação. O sonoplasta, por sua vez, gostava de comentar que o tal ator “se achava” demais por estar interpretando o “Rei dos Reis”, portanto, era merecedor de certo desprezo capaz de fazê-lo “baixar a bola”.
A apresentação começava por volta das 19h e o sonoplasta, como de praxe, passou uma boa parte da tarde visitando os bares da cidade onde estávamos. Voltou ao seio do grupo, pouco antes do início do espetáculo, com um bafo de onça que, provavelmente, o pessoal da primeira fila deve ter sentido.
Em meio àquele trânsito de atores e figurantes no pequeno espaço do camarim, na primeira oportunidade que o “filho de Deus” cruzou com o sonoplasta semibêbado, seus olhos demonstraram o quanto já estava movido por uma ira divina. O mesmo podia ser visto nos olhos (vermelhos) do outro. Nada falaram, mas nem foi preciso. O silêncio do sonoplasta foi o suficientemente ensurdecedor para que todos os demais membros do grupo ficassem tensos com aquela situação. Mas o espetáculo precisava acontecer e por isso estávamos todos lá.
E o espetáculo começou...Todos os atos e cenas em estilo realista se desenrolaram de maneira surpreendentemente tranqüila. Conseguíamos conduzir a história sem maiores percalços e já estávamos bem relaxados quando chegou o momento (final) da crucificação de Cristo.
Para realizar essa cena contávamos com um (d)efeito especial: ao pé da cruz onde o Cristo seria crucificado, montava-se uma caixa com uma pequena quantidade de pólvora que produzia uma inesperada fumaceira no palco quando o Cristo anunciava sua morte premente (“Está tudo consumado”) e declinava a cabeça à sua esquerda. Era o mote para o sonoplasta, de seu trono...quer dizer, de sua mesa...dar um clique em um interruptor que, por sua vez, acionava uma corrente elétrica cujo destino era, através de um fino fio que cortava o palco, a caixa com pólvora, posta aos pés do Cristo crucificado.
O declinar de cabeça antecedia o fumaceiro que tomava conta do palco e anunciava o momento final da vida do fundador da cristandade. Tudo bonito...tudo combinado...ensaiado...Mas, naquele dia, o TACEJA quase vivencia uma tragédia. Até hoje, muitas são as explicações sobre o que aconteceu, mas a unanimidade é que algo aconteceu no departamento de sonoplastia: alguns dizem que se tratou apenas de um descuido de natureza etílica. Outros dizem que se tratou de uma vingança sonoplástica ante uma suposta empáfia do Cristo. Alguns dizem que foram as duas coisas juntas: a empáfia do Cristo produziu o “descuido”.
Chega o momento. O Cristo entrega seu espírito ao Ser Supremo e pende a cabeça para o ombro esquerdo. Naquele instante, a dramaticidade da cena ganharia mais impacto devido a um inesperado (d)efeito especial: aos pés da cruz do Cristo, além da fumaça, o que se viu foi o súbito aparecimento de uma tocha ocasionada – descobriu-se depois – por uma quantidade um tanto exagerada de pólvora na caixinha encoberta pelo material cênico. Com a tocha veio a dor do ator que interpretava o Cristo recém-morto, revelada por um “oh!” que o fez tombar com a cabeça para o outro lado do corpo, enquanto sentia suas pernas, antes bem cabeludas, serem depiladas...Daí a razão pela qual toda a platéia posta na primeira fila do espaço onde se encenava a peça pôde sentir uma catinga de cabelo queimado que inundava suas respeitáveis narinas por alguns segundos.
Encerrada a cena e fechadas as cortinas, o Cristo, tomado por uma fúria típica dos inimigos de Seu pai, desceu da cruz e, com as pernas ainda envoltas em uma fina fumaça, sob aquele cheiro de cabelo queimado tomando conta do palco, partiu em direção do sonoplasta...foi preciso que Madalena, Maria e alguns apóstolos tomassem à frente para impedir a briga. Com isso, possibilitaram que tudo chegasse ao seu final: a profecia fosse cumprida, Cristo ressuscitasse e as cortinas de mais um espetáculo se fechassem.
Para ver outra postagem sobre o Evangelho Segundo o TACEJA, acesse: http://quixotesforrosebaioes.blogspot.com.br/2011/04/o-evangelho-segundo-o-taceja-angustia-e.html
Todo ano, quando se aproximava o tempo da semana santa, o TACEJA reunia-se para os ensaios e as apresentações da “Paixão de Cristo” (como nas terras do Coronel Justino Bento da Cruz, que lemos em “Briga na procissão”, poema de Chico Pedroza já postado aqui - ver: http://quixotesforrosebaioes.blogspot.com/2009/04/briga-na-procissao-de-chico-pedrosa.html). A trupe circulava por quase todo o Seridó e ainda havia eventuais apresentações em cidades próximas na Paraíba.
Ao longo dos anos, colecionei, com maior ou menor fidelidade aos fatos, estórias (vividas por mim mesmo ou de “ouvir falar” dos mais antigos no grupo) em torno das encenações da vida e morte de Jesus Cristo pelo TACEJA. Aliás, já conclamei através deste espaço ao meu queridíssimo Ronaldo Carlos que me enviasse (ou ele mesmo publicasse) algumas dessas histórias que, pela boca dele, são bem mais saborosas do que pelas minhas mãos. A provocação continua de pé.
De qualquer maneira, aqui exponho uma delas. Para preservar identidades, deixar fluir minha verve literária e não ser traído pela memória, preservarei nomes e (creio) poderei “inventar” alguns detalhes, mas, como diria Antônio Biá (delicioso personagem de “Narradores de Javé”) e meu amigo Bosco Araújo, tem narrativas que ficam melhores com umas pitadas de imaginação. A realidade, por vezes, é muito chata.
Vamos a uma dessas estórias...
Naqueles dias, por razões desconhecidas, mas imagináveis, o ator que fazia o papel do Cristo não cruzava seus bigodes com o sonoplasta do grupo. Para alguns mais chegados, o intérprete do fundador do cristianismo dizia que as atitudes do sonoplasta quando chegávamos em outras cidades não era lá muito recomendável, afinal, ele não perdia a oportunidade de antes dos espetáculos, dar uma saidinha e fazer o reconhecimento da área etílica onde estávamos. Isso, dizia o protagonista de nossa peça, punha em risco a imagem do grupo e da escola, afinal, tínhamos jovens menores de idade no grupo e, portanto, não “pegava bem” para a maior escola pública do Estado demonstrações de práticas dessa natureza no seio do seu grupo teatral. Além do que, por vezes, o rapaz voltava um tanto “quente” dessas visitas aos bares diretamente para o trabalho de sonoplastia durante a apresentação. O sonoplasta, por sua vez, gostava de comentar que o tal ator “se achava” demais por estar interpretando o “Rei dos Reis”, portanto, era merecedor de certo desprezo capaz de fazê-lo “baixar a bola”.
A apresentação começava por volta das 19h e o sonoplasta, como de praxe, passou uma boa parte da tarde visitando os bares da cidade onde estávamos. Voltou ao seio do grupo, pouco antes do início do espetáculo, com um bafo de onça que, provavelmente, o pessoal da primeira fila deve ter sentido.
Em meio àquele trânsito de atores e figurantes no pequeno espaço do camarim, na primeira oportunidade que o “filho de Deus” cruzou com o sonoplasta semibêbado, seus olhos demonstraram o quanto já estava movido por uma ira divina. O mesmo podia ser visto nos olhos (vermelhos) do outro. Nada falaram, mas nem foi preciso. O silêncio do sonoplasta foi o suficientemente ensurdecedor para que todos os demais membros do grupo ficassem tensos com aquela situação. Mas o espetáculo precisava acontecer e por isso estávamos todos lá.
E o espetáculo começou...Todos os atos e cenas em estilo realista se desenrolaram de maneira surpreendentemente tranqüila. Conseguíamos conduzir a história sem maiores percalços e já estávamos bem relaxados quando chegou o momento (final) da crucificação de Cristo.
Para realizar essa cena contávamos com um (d)efeito especial: ao pé da cruz onde o Cristo seria crucificado, montava-se uma caixa com uma pequena quantidade de pólvora que produzia uma inesperada fumaceira no palco quando o Cristo anunciava sua morte premente (“Está tudo consumado”) e declinava a cabeça à sua esquerda. Era o mote para o sonoplasta, de seu trono...quer dizer, de sua mesa...dar um clique em um interruptor que, por sua vez, acionava uma corrente elétrica cujo destino era, através de um fino fio que cortava o palco, a caixa com pólvora, posta aos pés do Cristo crucificado.
O declinar de cabeça antecedia o fumaceiro que tomava conta do palco e anunciava o momento final da vida do fundador da cristandade. Tudo bonito...tudo combinado...ensaiado...Mas, naquele dia, o TACEJA quase vivencia uma tragédia. Até hoje, muitas são as explicações sobre o que aconteceu, mas a unanimidade é que algo aconteceu no departamento de sonoplastia: alguns dizem que se tratou apenas de um descuido de natureza etílica. Outros dizem que se tratou de uma vingança sonoplástica ante uma suposta empáfia do Cristo. Alguns dizem que foram as duas coisas juntas: a empáfia do Cristo produziu o “descuido”.
Chega o momento. O Cristo entrega seu espírito ao Ser Supremo e pende a cabeça para o ombro esquerdo. Naquele instante, a dramaticidade da cena ganharia mais impacto devido a um inesperado (d)efeito especial: aos pés da cruz do Cristo, além da fumaça, o que se viu foi o súbito aparecimento de uma tocha ocasionada – descobriu-se depois – por uma quantidade um tanto exagerada de pólvora na caixinha encoberta pelo material cênico. Com a tocha veio a dor do ator que interpretava o Cristo recém-morto, revelada por um “oh!” que o fez tombar com a cabeça para o outro lado do corpo, enquanto sentia suas pernas, antes bem cabeludas, serem depiladas...Daí a razão pela qual toda a platéia posta na primeira fila do espaço onde se encenava a peça pôde sentir uma catinga de cabelo queimado que inundava suas respeitáveis narinas por alguns segundos.
Encerrada a cena e fechadas as cortinas, o Cristo, tomado por uma fúria típica dos inimigos de Seu pai, desceu da cruz e, com as pernas ainda envoltas em uma fina fumaça, sob aquele cheiro de cabelo queimado tomando conta do palco, partiu em direção do sonoplasta...foi preciso que Madalena, Maria e alguns apóstolos tomassem à frente para impedir a briga. Com isso, possibilitaram que tudo chegasse ao seu final: a profecia fosse cumprida, Cristo ressuscitasse e as cortinas de mais um espetáculo se fechassem.
Para ver outra postagem sobre o Evangelho Segundo o TACEJA, acesse: http://quixotesforrosebaioes.blogspot.com.br/2011/04/o-evangelho-segundo-o-taceja-angustia-e.html
Comentários
Que bons tempos aqueles em que se promovia a cultura de nossa cidade com peças teatrais, Festivais de músicas populares, semana cultural de cinema (quando existia cinema), além de outras atividades que promoviam o enriquecimento de nossa história e de nossa juventude. Lamentavelmente, o que vemos hoje são pequenos grupos culturais e artísticos desarticulados e sem nenhum incentivo por parte do poder público local que não tem uma política voltada para o resgate e incentivo dos valores culturais e artísticos em nossa cidade.
Itanê Vale
Ana Lucia ( Rondônia)
Ailton Medeiros