Os Encontros Teatrais de Augusto Boal, Parte 1
Hoje de madrugada foi registrada a morte física de Augusto Boal, um dos mais importantes homens da história do teatro brasileiro. Não apenas do teatro brasileiro, mas do teatro mundial. Devemos a ele rufadas generosas de renovação no teatro brasileiro e de profunda ligação entre teatro e política. Ele tinha 78 anos, sofria de leucemia e estava internado desde 28 de abril.
Gostaria de homenageá-lo publicando um texto dele que sempre me deliciou (cujo conteúdo já conhecia de uma conferência, no auditório da Escola de Música da UFRN) e já me dei ao trabalho de relatá-lo a amigos e colegas. Trata-se da introdução ao livro "O Arco-íris do desejo" (Ed. Civilização Brasileira), intitulada "As Razões deste livro: meus três encontros teatrais", em que ele relata e analisa momentos do seu processo de reflexão sobre o fazer teatral. Não sou da área, mas o texto é delicioso e nos faz pensar sobre muita coisa: atitudes, relações com os outros e conosco mesmo...nossas implicações naquilo que falamos e fazemos...enfim...Como ele é relativamente longo, eu o publicarei em pedaços, por encontro. Hoje é o primeiro deles.
"No começo dos anos sessenta, eu costumava viajar com o meu Teatro de Arena de São Paulo, visitando as regiões mais pobres do Brasil, no interior do estado e no nordeste do país. Pobreza, no Brasil, é sempre extrema. [...] E, no entanto, o Brasil é a oitava economia do mundo capitalista. A extrema opulência vizinha à miséria absoluta. E nós, artistas, idealistas, não podeíamos apoiar tamanha crueldade. Nós nos revoltávamos, nos indignávamos, sofríamos. E escrevíamos e montávamos nossas peças contra a injustiça, enérgicas, violentas, agressivas. Éramos heróicos ao escrevê-las e sublimes ao representá-las: peças que terminavam quase sempre com os atores cantando em coro canções exortativas [...] que terminavam sempre com frases do tipo "Derramemos nosso sangue pela liberdade! Derramemos nosso sangue pela nossa terra! Derramemos nosso sangue, derramemos!"Era o que nos parecia jsto e inadiável: exortar os oprimidos a lutar contra a opressão. Quais oprimidos? Todos. De um modo geral. Demasiado geral. E usávamos nossa arte para dizer verdades, para ensinar soluções: ensinávamos os camponeses a lutarem por suas terras, porém nós éramos gente da cidade grande; ensinávamos aos negros a lutarem conra o preconceito racial, mas éramos quase todos alvíssimos; ensinávamos às mulheres a lutarem contra seus opressores. Quais? Nós mesmos, pois éramos feministas-homens, quase todos. Valia a intenção.
Até que um dia - e há sempre um dia em toda história - [...] estávamos representando um desses belos musicais em um vilarejo do Nordeste, numa Liga Camponesa. Platéia emocionada, só de camponeses. Texto heróico, "Derramemos nosso sangue!" No fim do espetáculo aproximou-se de nós um camponês alto, enorme, forte, um homem emocionado, quase chorando:
- "É uma beleza ver vocês, gente moça da cidade, que pensa igualzinho que nem a gente. A gente também acha isso, que tem que dar o sangue pela terra."
Ficamos orgulhosos. Missão cumprida. Nossa "mensagem" tinha passado!
Mas Virgílio - nunca mais esquecerei nem seu nome nem seu rosto, nem sua lágrima silenciosa - Virgílio continuou:
- "E já que vocês pensam igualzinho que nem a gente, vamos fazer assim: primeiro a gente almoça (era quase meio-dia), depois vamos todos juntos, vocês com esses fuzis de vocês e nós como os nossos, vamos desalojar os jagunços do coronel que invadiram a roça de um companheiro nosso, puseram fogo na casa e ameaçaram matar a família inteira! Mas primeiro vamos comer."
Perdemos o apetite.
Tentando organizar os pensamentos e as meias frases, fizemos o possível para explicar o mal-entendido. O argumento que nos pareceu mais verdadeiro foi dizer a verdade: nossos fuzis era objetos de cenografia e nã armas de guerra.
- "Fuzil que não dá tiro???" - peguntou espantadíssimo. "Então pra que é que serve?"
- "Para fazer teatro. São fuzis que não disparam. Nós somos artistas sérios que dizemos o que pensamos, somos gente verdadeira, mas os fuzis são falsos."
- "Se os fuzis são de mentira, pode jogar fora, mas vocês são gente de verdade, eu vi vocês cantando pra derramar sangue, sou testemunha. Vocês são de verdade, então venham com a gente assim mesmo porque nós temos fuzis pra todo mundo."
O medo fez-se pânico. Porque era difícil explicar - tanto para Virgílio como para nós mesmos - como é que nós estávamos sendo sinceros e verdadeiros empunhando fuzis que não disparavam, nós, artistas, que não sabíamos atirar. Explicamos como pudemos. Se aceitássemos ir juntos, seríamos estorvo e não ajuda.
- "Então aquele sangue que vocês acham que a gente deve derramar é o nosso, não é o de vocês...?"
- "Porque nós somos verdadeiros sim, mas somos verdadeiros artistas e não verdadeiros camponeses..Virgílio, volta aqui, vamos continuar conversando...Volta..."
Nunca mais encontrei Virgílio.
Nunca mais esqueci Virgílio. Nem aquele momento em que me senti envergonhado da minha rate que, no entanto, me parecia bela. Alguma coisa estava errada. Não com o gênero teatral, que me parece, ainda hoje, perfeitamente válido, O Agit-Prop, agitação e propaganda, pode ser um instrumento mextremamente eficaz na luta política. Errada estava sua utilização.
Naquela época o Che Guevara escreveu uma frase muito linda: "Ser solidário significa correr o mesmo risco." Isso nos ajudou a compreender nosso erro. O Agit-Prop estava certo: o que estava errado era que nós não erámos capazes de seguir o nosso próprio conselho. Homens brancos da cidade tínhamos pouca coisa a ensinar às mulheres negras do campo.
Depois desse primeiro encontro - encontro com um camponês e não com um abstrato campesinato - encontro traumático mas iluminador, nunca mais fiz peças conselheiras, nunca mais enviei "mensagens"...a não ser quando eu ia junto, correndo o mesmo risco."
Se gostou dessa história, leia a segunda e última parte acessando http://quixotesforrosebaioes.blogspot.com.br/2009/05/encerro-aqui-minha-singela-homenagem.html
Gostaria de homenageá-lo publicando um texto dele que sempre me deliciou (cujo conteúdo já conhecia de uma conferência, no auditório da Escola de Música da UFRN) e já me dei ao trabalho de relatá-lo a amigos e colegas. Trata-se da introdução ao livro "O Arco-íris do desejo" (Ed. Civilização Brasileira), intitulada "As Razões deste livro: meus três encontros teatrais", em que ele relata e analisa momentos do seu processo de reflexão sobre o fazer teatral. Não sou da área, mas o texto é delicioso e nos faz pensar sobre muita coisa: atitudes, relações com os outros e conosco mesmo...nossas implicações naquilo que falamos e fazemos...enfim...Como ele é relativamente longo, eu o publicarei em pedaços, por encontro. Hoje é o primeiro deles.
"No começo dos anos sessenta, eu costumava viajar com o meu Teatro de Arena de São Paulo, visitando as regiões mais pobres do Brasil, no interior do estado e no nordeste do país. Pobreza, no Brasil, é sempre extrema. [...] E, no entanto, o Brasil é a oitava economia do mundo capitalista. A extrema opulência vizinha à miséria absoluta. E nós, artistas, idealistas, não podeíamos apoiar tamanha crueldade. Nós nos revoltávamos, nos indignávamos, sofríamos. E escrevíamos e montávamos nossas peças contra a injustiça, enérgicas, violentas, agressivas. Éramos heróicos ao escrevê-las e sublimes ao representá-las: peças que terminavam quase sempre com os atores cantando em coro canções exortativas [...] que terminavam sempre com frases do tipo "Derramemos nosso sangue pela liberdade! Derramemos nosso sangue pela nossa terra! Derramemos nosso sangue, derramemos!"Era o que nos parecia jsto e inadiável: exortar os oprimidos a lutar contra a opressão. Quais oprimidos? Todos. De um modo geral. Demasiado geral. E usávamos nossa arte para dizer verdades, para ensinar soluções: ensinávamos os camponeses a lutarem por suas terras, porém nós éramos gente da cidade grande; ensinávamos aos negros a lutarem conra o preconceito racial, mas éramos quase todos alvíssimos; ensinávamos às mulheres a lutarem contra seus opressores. Quais? Nós mesmos, pois éramos feministas-homens, quase todos. Valia a intenção.
Até que um dia - e há sempre um dia em toda história - [...] estávamos representando um desses belos musicais em um vilarejo do Nordeste, numa Liga Camponesa. Platéia emocionada, só de camponeses. Texto heróico, "Derramemos nosso sangue!" No fim do espetáculo aproximou-se de nós um camponês alto, enorme, forte, um homem emocionado, quase chorando:
- "É uma beleza ver vocês, gente moça da cidade, que pensa igualzinho que nem a gente. A gente também acha isso, que tem que dar o sangue pela terra."
Ficamos orgulhosos. Missão cumprida. Nossa "mensagem" tinha passado!
Mas Virgílio - nunca mais esquecerei nem seu nome nem seu rosto, nem sua lágrima silenciosa - Virgílio continuou:
- "E já que vocês pensam igualzinho que nem a gente, vamos fazer assim: primeiro a gente almoça (era quase meio-dia), depois vamos todos juntos, vocês com esses fuzis de vocês e nós como os nossos, vamos desalojar os jagunços do coronel que invadiram a roça de um companheiro nosso, puseram fogo na casa e ameaçaram matar a família inteira! Mas primeiro vamos comer."
Perdemos o apetite.
Tentando organizar os pensamentos e as meias frases, fizemos o possível para explicar o mal-entendido. O argumento que nos pareceu mais verdadeiro foi dizer a verdade: nossos fuzis era objetos de cenografia e nã armas de guerra.
- "Fuzil que não dá tiro???" - peguntou espantadíssimo. "Então pra que é que serve?"
- "Para fazer teatro. São fuzis que não disparam. Nós somos artistas sérios que dizemos o que pensamos, somos gente verdadeira, mas os fuzis são falsos."
- "Se os fuzis são de mentira, pode jogar fora, mas vocês são gente de verdade, eu vi vocês cantando pra derramar sangue, sou testemunha. Vocês são de verdade, então venham com a gente assim mesmo porque nós temos fuzis pra todo mundo."
O medo fez-se pânico. Porque era difícil explicar - tanto para Virgílio como para nós mesmos - como é que nós estávamos sendo sinceros e verdadeiros empunhando fuzis que não disparavam, nós, artistas, que não sabíamos atirar. Explicamos como pudemos. Se aceitássemos ir juntos, seríamos estorvo e não ajuda.
- "Então aquele sangue que vocês acham que a gente deve derramar é o nosso, não é o de vocês...?"
- "Porque nós somos verdadeiros sim, mas somos verdadeiros artistas e não verdadeiros camponeses..Virgílio, volta aqui, vamos continuar conversando...Volta..."
Nunca mais encontrei Virgílio.
Nunca mais esqueci Virgílio. Nem aquele momento em que me senti envergonhado da minha rate que, no entanto, me parecia bela. Alguma coisa estava errada. Não com o gênero teatral, que me parece, ainda hoje, perfeitamente válido, O Agit-Prop, agitação e propaganda, pode ser um instrumento mextremamente eficaz na luta política. Errada estava sua utilização.
Naquela época o Che Guevara escreveu uma frase muito linda: "Ser solidário significa correr o mesmo risco." Isso nos ajudou a compreender nosso erro. O Agit-Prop estava certo: o que estava errado era que nós não erámos capazes de seguir o nosso próprio conselho. Homens brancos da cidade tínhamos pouca coisa a ensinar às mulheres negras do campo.
Depois desse primeiro encontro - encontro com um camponês e não com um abstrato campesinato - encontro traumático mas iluminador, nunca mais fiz peças conselheiras, nunca mais enviei "mensagens"...a não ser quando eu ia junto, correndo o mesmo risco."
Se gostou dessa história, leia a segunda e última parte acessando http://quixotesforrosebaioes.blogspot.com.br/2009/05/encerro-aqui-minha-singela-homenagem.html
Comentários
o incrível poder da solidariedade.
Abraço
Ruy