Os Encontros Teatrais de Augusto Boal, Última Parte
Encerro, aqui, a minha singela homenagem a Augusto Boal, publicando um segundo pedaço de um texto dele, introdutório à obra "O Arco-íris do desejo". Abraços a todos e todas...e a ele onde estiver.
“No Peru, onde estive trabalhando no ano de 1973, num programa de alfabetização através do teatro, comecei a usar uma nova forma de teatro, à qual chamei de “Dramaturgia simultânea”. Consistia basicamente nisto: apresentávamos uma peça contendo um problema ao qual queríamos encontrar uma solução. O espetáculo se desenvolvia até o ponto da crise, até o momento em que o Protagonista devia tomar uma decisão. Aí parávamos e perguntávamos aos espectadores o que deveria ele fazer. Cada um dava a sua sugestão. E os atores, no palco, improvisavam uma por uma, até que todas as sugestões se esgotassem.
Já era um avanço, já não dávamos mais conselhos: aprendíamos juntos. Mas os atores conservavam “o poder”, o domínio do palco. As sugestões partiam da platéia, mas era em cena que nós os artistas interpretávamos o que havia sido dito.
Essa forma teatral teve bastante sucesso. Até que um dia – e há sempre um dia em cada história – um dia veio me procurar uma senhora tímida.
- “Eu sei que vocês fazem teatro político, e o meu problema não é político, mas é um problema enorme e é meu. Será que o senhor podia me ajudar com o seu teatro?”
Sempre que posso, ajudo. Pergunte-lhe como e me contou sua história: seu marido, - todos os meses e às vezes mais de uma vez no mesmo mês – pedia-lhe dinheiro para pagar as prestações de uma casa que ele dizia estar construindo para os dois. Todos os meses ela lhe dava o que sobrava, mesmo que não fosse muito. O marido, biscateiro, ganhava pouco. E ela dava. E, de vez em quando, o marido lhe entregava uns “recibos” das prestações, recibos escritos à mão e perfumados. E ela pedia para ver a casa. E ele dizia que mais tarde. E ela não via. E desconfiava. E um dia brigaram. E ela chamou a vizinha que sabia ler e pediu-lhe que lesse os recibos perfumados. Não eram recibos: cartas de amor que o marido recebia de sua amante e que a mulher analfabeta guardava dentro do colchão.
- “Amanhã meu marido volta para casa. Ele disse que foi trabalhar uma semana em Chaclacayo, como pedreiro, mas agora eu sei onde é que ele foi...O que é que eu faço?”
- “Eu não sei, minha senhora, mas vamos perguntar ao público.”
Não era político mas era um problema. Resolvemos aceitar a proposta, improvisamos um roteiro e à noite representamos o espetáculo em “dramaturgia simultânea”. Chegou a “crise”: o marido bate à porta, o que fazer? Eu não sabia: perguntei ao público. As soluções foram muitas:
- “Ela tem que fazer assim: deixa ele entrar, conta que descobriu a verdade e depois chora, chora muito, chora uns vinte minutos, porque aí ele vai se sentir arrependido e ela pode perdoar ele, porque mulher sozinha aqui neste país é muito perigoso...”
Improvisamos a solução e o choro, veio o arrependimento e o perdão e veio também o descontentamento de uma segunda espectadora:
- “Não é nada disso não. O que ela tem que fazer é trancar o marido do lado de fora...”
Improvisamos a tranca. O ator-marido, um jovenzinho magro, ficou contente:
- “Ah, é? Hoje foi meu dia de pagamento, vou levar meu dinheiro e dar para minha amante e vou viver com ela...”
Uma terceira espectadora propôs o contrário: ela devia deixar o marido só em sua casa, devia abandoná-lo. O ator-marido mais contente ficou: iria trazer a amante para viver em sua casa.
E as propostas foram chovendo. Improvisávamos todas. Até que eu reparei numa senhora gorda, muito gorda, sentada na terceira fila, bufando com raiva, balançando a cabeça. [...] Gentilmente perguntei:
- “Minha senhora, eu acho que a senhora tem uma idéia. Pode dizer que a gente experimenta..”
- “O que ela tem que fazer é o seguinte: ela tem que deixar ele entrar, tem que ter uma conversa séria com ele, e só depois ela pode perdoar...”
Fiquei decepcionado. Com tanta respiração ofegante, com tantos bufos e olhares mortíferos, pensei que ela teria proposta mais violentas. Mas não disse nada e propus aos atores que improvisassem também essa solução. Improvisaram sem muito empenho. O marido fez protestos de amor e, já de pazes feitas, pediu que ela fosse à cozinha buscar a sua sopa. Ela foi e acabou a cena.
Olhei para a senhora gorda. Estava bufando mais do que nunca e seus olhares fulminantes eram mais letais e furibundos.
- “A senhora vai me desculpar mas nós fizemos o que a senhora sugeriu: ela teve uma explicação clara e depois perdoou o marido e parece que agora vão poder ser felizes...”
- “Não foi isso que eu disse. Eu disse que ela devia ter uma explicação clara, muito clara, e só depois, de...po...is..., só depois ela devia perdoar.”
- “Eu acho que foi isso o que a gente improvisou, mas se a senhora quiser, nós podemos improvisar de novo...”
- “Quero!”
Pedi a atriz que exagerasse um pouco na explicação, que explicasse o melhor possível e exigisse as mais profundas e sinceras explicações. O que foi feito. Depois de tudo muitíssimo bem explicado, o marido amoroso e perdoado, pediu-lhe que fosse à cozinha buscar a sopa. E já iam viver eternamente felizes quando reparei que a senhora gorda estava mais furibunda do que nunca, mais ameaçadora, mais perigosa. Eu, nervosíssimo e, confesso, com um certo medo – a dona era mais forte do que eu! – fiz uma proposta:
- “Minha senhora, nós estamos fazendo o possível para entender o que a senhora quer, estamos tendo as explicações mais claras de que somos capazes, mas se a senhora ainda assim não está satisfeita, porque é que a senhora não sobe aqui no palco e mostra a senhora mesma o que é que está querendo dizer!?!”
Iluminada, transfigurada, a senhora gorda estufou o peito, inflou-se toda e, com os olhos fulgurantes, perguntou: “Posso?” – “Pode!”
Subiu no palco, agarrou o pobre ator-marido indefeso, que era apenas um verdadeiro ator e não um verdadeiro marido e, além disso, magro e fraco, agarrou um cabo de vassoura e começou a bater-lhe com toda força enquanto lhe dizia tudo o que pensava das relações entre marido e mulher. Tentamos socorrer o companheiro em perigo, mas a senhora gorda era mais forte do que nós. Finalmente, deu-se por satisfeita, colocou sua vítima sentada à mesa e disse:
- “Agora que nós tivemos esta conversa muito clara, muito sincera, agora VOCÊ vai lá na cozinha e pega a MINHA sopa!!!”
Mais claro, impossível
Mais claro ainda ficou para mim uma verdade: quando é o próprio espectador que entra em cena e realiza a ação que imagina, ele o fará de uma maneira pessoal, única e intransferível, como só ele poderá fazê-lo e nenhum artista em seu lugar. Em cena, o ator é um intérprete que, traduzindo, trai. Impossível não fazê-lo."
“No Peru, onde estive trabalhando no ano de 1973, num programa de alfabetização através do teatro, comecei a usar uma nova forma de teatro, à qual chamei de “Dramaturgia simultânea”. Consistia basicamente nisto: apresentávamos uma peça contendo um problema ao qual queríamos encontrar uma solução. O espetáculo se desenvolvia até o ponto da crise, até o momento em que o Protagonista devia tomar uma decisão. Aí parávamos e perguntávamos aos espectadores o que deveria ele fazer. Cada um dava a sua sugestão. E os atores, no palco, improvisavam uma por uma, até que todas as sugestões se esgotassem.
Já era um avanço, já não dávamos mais conselhos: aprendíamos juntos. Mas os atores conservavam “o poder”, o domínio do palco. As sugestões partiam da platéia, mas era em cena que nós os artistas interpretávamos o que havia sido dito.
Essa forma teatral teve bastante sucesso. Até que um dia – e há sempre um dia em cada história – um dia veio me procurar uma senhora tímida.
- “Eu sei que vocês fazem teatro político, e o meu problema não é político, mas é um problema enorme e é meu. Será que o senhor podia me ajudar com o seu teatro?”
Sempre que posso, ajudo. Pergunte-lhe como e me contou sua história: seu marido, - todos os meses e às vezes mais de uma vez no mesmo mês – pedia-lhe dinheiro para pagar as prestações de uma casa que ele dizia estar construindo para os dois. Todos os meses ela lhe dava o que sobrava, mesmo que não fosse muito. O marido, biscateiro, ganhava pouco. E ela dava. E, de vez em quando, o marido lhe entregava uns “recibos” das prestações, recibos escritos à mão e perfumados. E ela pedia para ver a casa. E ele dizia que mais tarde. E ela não via. E desconfiava. E um dia brigaram. E ela chamou a vizinha que sabia ler e pediu-lhe que lesse os recibos perfumados. Não eram recibos: cartas de amor que o marido recebia de sua amante e que a mulher analfabeta guardava dentro do colchão.
- “Amanhã meu marido volta para casa. Ele disse que foi trabalhar uma semana em Chaclacayo, como pedreiro, mas agora eu sei onde é que ele foi...O que é que eu faço?”
- “Eu não sei, minha senhora, mas vamos perguntar ao público.”
Não era político mas era um problema. Resolvemos aceitar a proposta, improvisamos um roteiro e à noite representamos o espetáculo em “dramaturgia simultânea”. Chegou a “crise”: o marido bate à porta, o que fazer? Eu não sabia: perguntei ao público. As soluções foram muitas:
- “Ela tem que fazer assim: deixa ele entrar, conta que descobriu a verdade e depois chora, chora muito, chora uns vinte minutos, porque aí ele vai se sentir arrependido e ela pode perdoar ele, porque mulher sozinha aqui neste país é muito perigoso...”
Improvisamos a solução e o choro, veio o arrependimento e o perdão e veio também o descontentamento de uma segunda espectadora:
- “Não é nada disso não. O que ela tem que fazer é trancar o marido do lado de fora...”
Improvisamos a tranca. O ator-marido, um jovenzinho magro, ficou contente:
- “Ah, é? Hoje foi meu dia de pagamento, vou levar meu dinheiro e dar para minha amante e vou viver com ela...”
Uma terceira espectadora propôs o contrário: ela devia deixar o marido só em sua casa, devia abandoná-lo. O ator-marido mais contente ficou: iria trazer a amante para viver em sua casa.
E as propostas foram chovendo. Improvisávamos todas. Até que eu reparei numa senhora gorda, muito gorda, sentada na terceira fila, bufando com raiva, balançando a cabeça. [...] Gentilmente perguntei:
- “Minha senhora, eu acho que a senhora tem uma idéia. Pode dizer que a gente experimenta..”
- “O que ela tem que fazer é o seguinte: ela tem que deixar ele entrar, tem que ter uma conversa séria com ele, e só depois ela pode perdoar...”
Fiquei decepcionado. Com tanta respiração ofegante, com tantos bufos e olhares mortíferos, pensei que ela teria proposta mais violentas. Mas não disse nada e propus aos atores que improvisassem também essa solução. Improvisaram sem muito empenho. O marido fez protestos de amor e, já de pazes feitas, pediu que ela fosse à cozinha buscar a sua sopa. Ela foi e acabou a cena.
Olhei para a senhora gorda. Estava bufando mais do que nunca e seus olhares fulminantes eram mais letais e furibundos.
- “A senhora vai me desculpar mas nós fizemos o que a senhora sugeriu: ela teve uma explicação clara e depois perdoou o marido e parece que agora vão poder ser felizes...”
- “Não foi isso que eu disse. Eu disse que ela devia ter uma explicação clara, muito clara, e só depois, de...po...is..., só depois ela devia perdoar.”
- “Eu acho que foi isso o que a gente improvisou, mas se a senhora quiser, nós podemos improvisar de novo...”
- “Quero!”
Pedi a atriz que exagerasse um pouco na explicação, que explicasse o melhor possível e exigisse as mais profundas e sinceras explicações. O que foi feito. Depois de tudo muitíssimo bem explicado, o marido amoroso e perdoado, pediu-lhe que fosse à cozinha buscar a sopa. E já iam viver eternamente felizes quando reparei que a senhora gorda estava mais furibunda do que nunca, mais ameaçadora, mais perigosa. Eu, nervosíssimo e, confesso, com um certo medo – a dona era mais forte do que eu! – fiz uma proposta:
- “Minha senhora, nós estamos fazendo o possível para entender o que a senhora quer, estamos tendo as explicações mais claras de que somos capazes, mas se a senhora ainda assim não está satisfeita, porque é que a senhora não sobe aqui no palco e mostra a senhora mesma o que é que está querendo dizer!?!”
Iluminada, transfigurada, a senhora gorda estufou o peito, inflou-se toda e, com os olhos fulgurantes, perguntou: “Posso?” – “Pode!”
Subiu no palco, agarrou o pobre ator-marido indefeso, que era apenas um verdadeiro ator e não um verdadeiro marido e, além disso, magro e fraco, agarrou um cabo de vassoura e começou a bater-lhe com toda força enquanto lhe dizia tudo o que pensava das relações entre marido e mulher. Tentamos socorrer o companheiro em perigo, mas a senhora gorda era mais forte do que nós. Finalmente, deu-se por satisfeita, colocou sua vítima sentada à mesa e disse:
- “Agora que nós tivemos esta conversa muito clara, muito sincera, agora VOCÊ vai lá na cozinha e pega a MINHA sopa!!!”
Mais claro, impossível
Mais claro ainda ficou para mim uma verdade: quando é o próprio espectador que entra em cena e realiza a ação que imagina, ele o fará de uma maneira pessoal, única e intransferível, como só ele poderá fazê-lo e nenhum artista em seu lugar. Em cena, o ator é um intérprete que, traduzindo, trai. Impossível não fazê-lo."
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