Memórias da bêbada e desequilibrada ditadura...
Esta semana que se encerrou teve como marca a passagem dos 45 anos do golpe civil-militar de 1964. Sou de uma geração que quando começou a protagonizar a consciência de inserção no mundo a ditadura militar já estava em frangalhos. Os exilados já estavam voltando ao país. As greves do ABC paulista e as eleições de 1982 já tinham decretado a decrepitude do regime. Trocando em miúdos (e entregando a idade...rs): quando Tancredo Neves ganhou a eleição no Colégio Eleitoral, eu ainda estava com meus 16 anos...pronto! Os desmemoriados, se quiserem, abram seus livros de História do Ensino Médio e vejam em que ano foi isso...
Mas o que eu quero assinalar é como determinados pequenos fatos, quando rememorados à luz de uma análise que só o tempo nos fornece, adquirem dimensões não percebidas no momento em que foram acontecidos.
Então eu contarei um pequeno episódio que retrata uma das presenças da ditadura no universo de uma pequena cidade do interior, a partir dos olhos de uma criança de 9 ou 10 anos. O título da postagem era outro. O título atual foi tomado de empréstimo do comentário enviado pelo velho companheiro Djair Galvão.
Era 7 de setembro e as rádios não paravam de tocar aquela marchinha infame - "Esse é um país que vai pra frenteeee...ôôôôô...de uma gente humilde e tão contenteeee...ôôôôôô". No largo da rodoviária aquele monte de crianças e jovens das escolas públicas locais. Éramos orientados a estar lá logo cedo, para formarmos a ordem de desfile. Como acontecia todo ano, nunca as coisas aconteciam na hora marcada. Claro, tínhamos que esperar que todas as autoridades estivessem no palanque armado no centro da cidade para que as escolas iniciassem o desfile. E as autoridades nunca chega(ra)m na hora. Nem seus filhos tinham que ficar sob aquelas condições.
Então, era inevitável que algumas daquelas crianças, que tinham saído de casa sem tomar café ou que simplesmente não aguentavam tanto tempo debaixo de um sol inclemente, desabassem em um desmaio que acabava sendo salvador, pois acabava por desobrigá-las de desfilar. E desfilar no 07 de setembro era um obrigação cujo descumprimento era motivo até mesmo para uma suspensão na escola. Você poderia ser o melhor em história, em português, matemática, em qualquer matéria, mas não desfilar era fatal. O cúmulo do antipatriotismo...Até hoje não entendo como era possível que se acreditasse que aquelas crianças seriam bravos patriotas, submetidos a tudo aquilo...Ficávamos horas debaixo do tal sol inclemente. Os mais baixinhos (como eu) eram ridicularizados pelos garotos mais altos pela singela alcunha de "frasqueira", leia-se um enorme coletivo de crianças baixinhas, cujo arco de visão à sua frente era a nuca do colega...Quando em plena avenida, marchando como pequenos soldados, não podíamos atravessar o passo ou dar uma viradinha no rosto para ver o público nas laterais assistindo o desfile (às vezes em busca do sorriso ou de um tchauzinho dos nossos pais, normalmente orgulhosos em verem seus filhos ali como bravos patriotas). Tudo isso nos fazia merecedores de uma reguada ou uma advertência (ou as duas coisas juntas) de nossas professoras, fiscais de nossa performance na avenida.
Mas o que devo contar se passou exatamente nas horas que antecederam o desfile, quando estávamos lá vendo o tempo passar.
Naqueles dias, não se vendia bebida alcóolica no dia 7, então os bebuns se fartavam durante o dia 06. De modo que naquela manhã fomos presenteados com uma performance de um cidadão que do alto do seu teor alcóolico realizava uma crítica ao regime militar que nenhum artista, militante de esquerda nem ninguém havia feito até então para nós.
O cidadão (militante do PC - não caros leitores, não era do Partido Comunista, era do Partido da Cachaça) atravessou o largo da rodoviária cambaleante, driblando os estudantes e sem direção. Ao chegar no meio do largo, percebendo todo o clima ao seu redor e vendo o enorme espaço aberto à sua disposição (sim, porque nenhum de nós aguentava ficar perto do cara, do contrário poderíamos ficar alcoolizados só com o seu bafo), ele iniciou sua performance: balbuciou os primeiros versos da indefectível marchinha e começou a andar para trás...e sorria...e nós nos divertíamos com aquela imagem. Enquanto em seu cantar o Brasil era um país que ia para frente, suas pernas cambaleantes o conduziam para trás...a própria expressão do país da época. A condensação corporal-estética-performática de tudo quanto vivíamos naquela época....
Mas na minha idade eu ainda não tinha consciência daquilo. E não entedi (como muitos de nós não entendemos) o porque de, alguns minutos depois do início do espetáculo etílico-crítico daquele simpático performático, um carro do batalhão do Exército ter chegado e de dentro dele dois soldados o terem pego um tanto violentamente e levado-o preso. Arrisco-me a dizer que foi o primeiro preso político em terras caicoenses...rs...
Aquela cena foi motivo de alguns risos nervosos entre nós, mas hoje quando lembro dela é para pensar o tamanho da idiotice de um regime ditatorial, capaz de produzir a prisão de um bêbado por criticar o governo.
Anos depois eu já estava fazendo movimento estudantil no CEJA e depois na UFRN...E me orgulho de ter colocado um grão de areia no movimento social e político que possibilitou que qualquer um (bêbado ou sóbrio) possa questionar o governo vigente sem que tenha que amargar a prisão.
Mas o que eu quero assinalar é como determinados pequenos fatos, quando rememorados à luz de uma análise que só o tempo nos fornece, adquirem dimensões não percebidas no momento em que foram acontecidos.
Então eu contarei um pequeno episódio que retrata uma das presenças da ditadura no universo de uma pequena cidade do interior, a partir dos olhos de uma criança de 9 ou 10 anos. O título da postagem era outro. O título atual foi tomado de empréstimo do comentário enviado pelo velho companheiro Djair Galvão.
Era 7 de setembro e as rádios não paravam de tocar aquela marchinha infame - "Esse é um país que vai pra frenteeee...ôôôôô...de uma gente humilde e tão contenteeee...ôôôôôô". No largo da rodoviária aquele monte de crianças e jovens das escolas públicas locais. Éramos orientados a estar lá logo cedo, para formarmos a ordem de desfile. Como acontecia todo ano, nunca as coisas aconteciam na hora marcada. Claro, tínhamos que esperar que todas as autoridades estivessem no palanque armado no centro da cidade para que as escolas iniciassem o desfile. E as autoridades nunca chega(ra)m na hora. Nem seus filhos tinham que ficar sob aquelas condições.
Então, era inevitável que algumas daquelas crianças, que tinham saído de casa sem tomar café ou que simplesmente não aguentavam tanto tempo debaixo de um sol inclemente, desabassem em um desmaio que acabava sendo salvador, pois acabava por desobrigá-las de desfilar. E desfilar no 07 de setembro era um obrigação cujo descumprimento era motivo até mesmo para uma suspensão na escola. Você poderia ser o melhor em história, em português, matemática, em qualquer matéria, mas não desfilar era fatal. O cúmulo do antipatriotismo...Até hoje não entendo como era possível que se acreditasse que aquelas crianças seriam bravos patriotas, submetidos a tudo aquilo...Ficávamos horas debaixo do tal sol inclemente. Os mais baixinhos (como eu) eram ridicularizados pelos garotos mais altos pela singela alcunha de "frasqueira", leia-se um enorme coletivo de crianças baixinhas, cujo arco de visão à sua frente era a nuca do colega...Quando em plena avenida, marchando como pequenos soldados, não podíamos atravessar o passo ou dar uma viradinha no rosto para ver o público nas laterais assistindo o desfile (às vezes em busca do sorriso ou de um tchauzinho dos nossos pais, normalmente orgulhosos em verem seus filhos ali como bravos patriotas). Tudo isso nos fazia merecedores de uma reguada ou uma advertência (ou as duas coisas juntas) de nossas professoras, fiscais de nossa performance na avenida.
Mas o que devo contar se passou exatamente nas horas que antecederam o desfile, quando estávamos lá vendo o tempo passar.
Naqueles dias, não se vendia bebida alcóolica no dia 7, então os bebuns se fartavam durante o dia 06. De modo que naquela manhã fomos presenteados com uma performance de um cidadão que do alto do seu teor alcóolico realizava uma crítica ao regime militar que nenhum artista, militante de esquerda nem ninguém havia feito até então para nós.
O cidadão (militante do PC - não caros leitores, não era do Partido Comunista, era do Partido da Cachaça) atravessou o largo da rodoviária cambaleante, driblando os estudantes e sem direção. Ao chegar no meio do largo, percebendo todo o clima ao seu redor e vendo o enorme espaço aberto à sua disposição (sim, porque nenhum de nós aguentava ficar perto do cara, do contrário poderíamos ficar alcoolizados só com o seu bafo), ele iniciou sua performance: balbuciou os primeiros versos da indefectível marchinha e começou a andar para trás...e sorria...e nós nos divertíamos com aquela imagem. Enquanto em seu cantar o Brasil era um país que ia para frente, suas pernas cambaleantes o conduziam para trás...a própria expressão do país da época. A condensação corporal-estética-performática de tudo quanto vivíamos naquela época....
Mas na minha idade eu ainda não tinha consciência daquilo. E não entedi (como muitos de nós não entendemos) o porque de, alguns minutos depois do início do espetáculo etílico-crítico daquele simpático performático, um carro do batalhão do Exército ter chegado e de dentro dele dois soldados o terem pego um tanto violentamente e levado-o preso. Arrisco-me a dizer que foi o primeiro preso político em terras caicoenses...rs...
Aquela cena foi motivo de alguns risos nervosos entre nós, mas hoje quando lembro dela é para pensar o tamanho da idiotice de um regime ditatorial, capaz de produzir a prisão de um bêbado por criticar o governo.
Anos depois eu já estava fazendo movimento estudantil no CEJA e depois na UFRN...E me orgulho de ter colocado um grão de areia no movimento social e político que possibilitou que qualquer um (bêbado ou sóbrio) possa questionar o governo vigente sem que tenha que amargar a prisão.
Comentários
Muito boa!
É fato que toda uma geração que foi criança ou adolescente nesse período histórico do Brasil foi submetida a um mesmo tipo de disciplinamento na escola, do Oiapoque ao Chuí. Não por acaso, na educação ainda predominava a visão durkheimiana, ou seja, a pedagogia da conformação pela coerção.
Mas imagine o que eram essas tais datas cívicas, morando num município área de segurança nacional!!!
Compartilho aqui um grande fato que vivenciei na época, e sua relação com outros grandes fatos históricos desse período.
Lembro especialmente, já na adolescência, do dia em que todos os alunos do município foram reunidos nas proximidades do aeroporto da cidade (especialmente construído para a ocasião), impecavelmente uniformizados, e empunhando bandeirinhas para receber um ilustre visitante: o Presidente da República Ernesto Geisel.
Oficialmente a visita do presidente deveu-se ao fato de o município ser o mais arenista do Brasil. Pelo menos era isso que a emissora de rádio local anunciava, o tempo todo. Mas calcule o que significou essa visita no imaginário de uma população predominantemente de origem alemã, vendo toda a movimentação das Forças Armadas naquele dia, no município.
Porém, o período dessa visita também coincidiu com o início das obras de Itaipu; a CPT, recém criada, estava iniciando a articulação dos agricultores que seriam desapropriados; na região estava surgindo uma liderança forte da PPL e que em 78 elegeu-se deputado estadual pelo então MDB (pastor luterano e meu compadre); e o MST estava nascendo como movimento social em nosso país.
Então, a visita de Geisel não foi apenas amistosa, mas muito estratégica.
Por ter vivido isso, percebido a contradição e ter sido capaz de fazer a reflexão, como pedagoga sempre lutei contra resquícios de posturas ditatoriais no ambiente escolar.
Abraços com laços,
Neura Maria Weber Maron
Feliz por ler seu texto e resgatar do baú das minhas memórias o tempo vivido em plena ditadura! Não em Caicó, cidade Natal de parte de minha família e raízes maternas, mas, sim, no planalto central, foco do império ditador da época (e de agora!?).
A "Parada" passava no eixo central da asa do avião e todos corriam e se juntavam para ver passar o "grande ditador" e sua corriola. Um espetáculo de emocionar qualquer um, especialmente aqueles inocentes e sem malícia, pela ausência de consciência do contexto da época.
Válida experiência! Pena não ter encontrado nenhum bebum q tivesse a coragem de ser preso por expressar o q sentia, pq ser preso ali, naquele contexto, era abdução sem volta!
abraços
Conceição Varella
Luma Carvalho