EJA: por uma política educacional visível aos invisíveis
No meu agir sobre o mundo, parto, reflito e me nutro de referências de leitura sobre ele. Além de minhas experiências pessoais, é do pensamento humano que me é disponibilizado que devo me valer. Minha condição humana assim me impõe. Fôssemos máquinas, seria suficiente reproduzirmos as lógicas de programação prévia que outras lógicas impõem. Não fôssemos humanos, nossos gozos seriam meras (con)sequencias de algoritmos.
No campo em que milito - o da educação - o que poderia ser terreno fértil para a (re)criação de processos abertos de construção de lógicas operantes em razão das pessoas e da sua diversidade, não raro, se torna caminho de lógicas de razões impessoais e monotéticas. Usando uma alegoria agrária, por vezes sentimos mais forte o odor de uma visão mais próxima da monocultura - à qual a terra deve ser exaurida (com venenos, quase sempre) para ser capaz de gerar apenas um tipo de produto - do que o perfume de uma perspectiva que move a tradicional agricultura familiar - que preza pela diversidade de cultivos (de preferência, com o uso da agroecologia), até como forma de garantir a sobrevida da própria terra.
Entender e levar às últimas consequências a noção de que na existência que nos toma a todos subsiste formas diversas de existências não reduzíveis a que nós mesmos vivemos, implica reconhecer a Alteridade - isto é - as formas específicas pelas quais um Outro se manifesta - como fundamento básico, ético, político e cultural. Trata-se, pois, de um conceito que, em sua abstração, se aplica e se realiza todos os dias, nos mais recônditos espaços de nossa vida mundana.
Em torno desse conceito, um autor se revela magistral: o lituano-francês Emmanuel Lévinas (1906-1995), cujo pensamento tentarei esboçar (de forma irresponsavelmente sintética nos limites desse artigo de opinião) como forma de anteparo para a questão antecipada no título deste escrito.
Lévinas entende que a mentalidade ocidental desconsidera a Alteridade do Outro, o qual somente é aceito como convertido ou reduzido a uma projeção desse “Eu” que se pensa único. Assim, o reconhecimento do Outro passa exclusivamente pela sua submissão aos termos, lógicas e razões da minha cultura, da minha religião, do meu tempo e da minha forma de organização e visão do mundo. Ou seja, a existência, como totalidade, só é o que é porque se iguala ao que Eu penso que deva, ou legitimo, ser. Uma mistura de Parmênides (“O ser é, o não-ser não é”) com o ego cogito de Descartes (“Penso, logo existo”).
Nessa visão egocêntrica, tudo o que está para além desse Eu ou do que me é igual ou semelhante - isto é, o(s) Outro(s) - se coloca como não existente, como não legítimo, um desvio, uma anomalia, o que, portanto, justificaria ações no sentido de sua extirpação, dado que, no limite, é responsável (ou culpado) pela manutenção do próprio existir.
Se o único mundo possível de ser visto é aquele que me reflete, o(s) Outro(s) passam a ser invisíveis, porque fora das possibilidades do aceitável e do sentido “verdadeiro” da existência que engloba a todos. A não percepção do Outro torna este Eu imune ao sofrimento daquele, dado que seu Rosto não é visível, pois, quando muito, ele está, apenas, do meu lado, mas nunca à minha frente.
Na militância da educação, penso e defendo uma educação como direito de todos os Rostos, não apenas, portanto, de crianças e adolescentes que se encontram (ou podem vir a ser) acolhidas pelas estruturas escolares denominadas de “Ensino Regular”. A totalidade do direito à educação não se restringe a essa parte dos sujeitos, mas a Outros - jovens, adultos e idosos - cujas trajetórias de relação com a escola é marcada por acidentes (muitos dos quais socialmente propositais).
Encontro-me, pois, numa trincheira bem difícil, porque mesmo entre aqueles parceiros que defendem a educação como um direito público para todos, o entendimento de que esse “todos” comporta (ou deveria comportar) pessoas com mais de 15 anos de idade excluídos da escola, exige deles um movimento nem sempre tranquilo de reconhecimento de que nos seus respectivos conceitos de “educação para todos”, por vezes, não cabem todos, mas apenas uma parte.
Como militante da EJA, fica impossível não dialogar com as reflexões de Lévinas, com os olhos voltados para a realidade da educação básica, sem abordar a forma como a cultura pedagógica hegemônica incorpora essa racionalidade que vê a existência do modelo do Ensino Regular (na verdade, a educação que se volta para crianças e adolescentes) como único modelo possível de organização dos tempos, das dinâmicas, dos ritmos e dos mecanismos de funcionamento do processo pedagógico.
Ao pensarem a Totalidade reduzida ao contexto do Ensino Regular reproduzem o olhar que não consegue ver todos os sujeitos que compõem o conjunto mais amplo dos que têm direito à educação e que, no Brasil, infelizmente, compreende muito mais que as pessoas de 0 a 17 anos.
Assim, o arco de suas respectivas visões se prendem apenas àqueles sujeitos que a escola já alcança em grande medida: crianças e adolescentes que todos os dias entram e saem das escolas; que pela idade e condição psicossocial estabelecem uma relação de subordinação em relação aos adultos que lhes acolhem nas escolas; que, em princípio, não exercem papéis de responsabilidade financeira perante seus coletivos familiares; e não estabelecem vínculos (in)formais com o mundo do trabalho.
Os sujeitos não enquadrados nessa dinâmica e nesse formato, consequentemente, se perdem como desvios de um caminho que naturalmente já deveriam ter trilhado, cujas razões do não realizar-se se dividem entre as explicações do cinismo meritocrático ou da inércia sociológica ante a nossa histórica desigualdade social. No Brasil, estima-se em cerca de 80 milhões o número de pessoas maiores de 15 anos que não concluíram a educação básica. Embora tantos, se tornam invisibilizados pela reduzida oferta de vagas e pela ausência de processos de mobilização para atraí-los às escolas.
Mas, mesmo quando tentam retomar os estudos encontram uma escola organizada nos mesmos moldes daquela que os expulsou quando crianças ou adolescentes. Só que agora eles são Outros - suas dinâmicas de vida não são aquelas de quando crianças; suas necessidades de aprendizagem também não são as mesmas; os desafios que vivenciam cotidianamente são outros; a imersão no mundo se realiza conforme outros ritmos e em espaços mais diversificados e complexos; o poder sobre o próprio tempo é cada vez menor e a vida mais imprevisível (aqui, outro pensador contemporâneo, Zygmunt Bauman, pode nos dar uma mãozinha, ou um cerebrozinho).
Uma escola para jovens e adultos que se mantém regida por dinâmicas e processos previsíveis, inflexíveis, rotinas e formas de organização tal qual a do Ensino Regular só assim existe porque, na verdade, na nossa cultura pedagógica, esses sujeitos não são visíveis como tais, mas reduzidos (e condenados) a se legitimarem apenas se capazes de se adequarem a esse formato que sequer o reconhecem o que está explícito em seus rostos, sujeitos que buscam retornar aos estudos e almejam a conclusão da educação básica, para acessarem outros novos direitos.
Aliás, é incrível como até na linguagem pedagógica hegemônica a não percepção desse Outro se materializa, na medida em que os define pela negatividade. A começar pela própria LDB que prescreve a EJA como destinada àqueles que “não” concluíram a educação básica na “época apropriada”. Também vemos outras expressões igualmente questionáveis, como as que fazem referência à alfabetização "na idade certa" ou "adequada". Se, como nos indica Heidegger, a linguagem é a morada do ser, comecemos a nomear esses sujeitos pelo que eles, de fato, são: sujeitos que buscam retomar ou iniciar seus estudos anteriormente interrompidos. Sujeitos que entendem que não há idade certa, adequada ou apropriada para se alfabetizar ou estudar, mas apenas a necessidade legítima de exercitar um direito e dar conta de uma necessidade. Afirmá-los pela positividade e pelo que expressam visivelmente e não pelo desenho que se faz deles, pelas pontas de um pincel que os invisibiliza.
No próprio discurso circulante nos corredores das escolas e das secretarias de educação os sujeitos da EJA são os “atrasados”, os que “não conseguiram”, os que “correm para recuperar o tempo perdido” e tantas outras formas de nomear - sempre pela negatividade - uma condição cujas origens não estão em opções individuais livremente assumidas, mas nas estruturas de desigualdade social que herdamos de nosso passado escravocrata e que, na linguagem, são incorporadas como traço dos sujeitos e não das estruturas a serem modificadas.
Quando as desigualdades se “naturalizam” os sujeitos que as sofrem são invisibilizados e suas demandas vistas como problemas à margem, cujo tratamento pontual, esparso e focalizado é o máximo a ser possibilitado, na medida em que escapa ao que é tido como “normalidade”, porque de visibilidade geral, parte da Totalidade, reflexo de um Eu hegemônico.
O novo governo tem a responsabilidade de romper essa lógica. Durante o interregno entre 2003 e 2015, indubitavelmente, a EJA foi inserida na agenda educacional e suas demandas ganharam alguma visibilidade (não sem intensa luta). Porém, e novamente, face à depredação de conquistas operadas desde 2016 e de um governo de “Frente Ampla”, sucede que precisamos repetir a necessidade de que as demandas atuais da EJA tenham visibilidade: dentro dos espaços da gestão pública, como objetos de política pública - e não um amontoado de programas e projetos - e no âmbito das escolas, como modelo pedagógico próprio - e não como campo de práticas malabarísticas de adaptações do Ensino Regular.
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