De escolas, shoppings centers, e o que (não) aprendemos em tempos de pandemia
O Sr. Alexandre Soares Gomes, presidente da seção potiguar da UNDIME (articulação institucional que reúne secretários municipais de educação) e secretário municipal de educação de Monte Alegre, usou das redes sociais para lamentar que ao contrário dos shoppings centers, a escolas estavam obrigadas a se manterem fechadas. Para ele, isso seria uma prova cabal da pouca valorização da educação no contexto das decisões sobre a retomada do funcionamento das atividades sociais.
O Presidente da UNDIME (em resposta a comentários de uma das pessoas que acompanharam sua postagem), observa duas realidades que se impõem no sentido do retorno das atividades escolares presenciais: (a) o desemprego na área da educação (certamente referindo-se ao conjunto de profissionais não concursados que as prefeituras contratam para garantirem a oferta dos serviços); e (b) as providências que os gestores (e suas equipes) estão fazendo para dotar as escolas de condições sanitárias adequadas à circulação das pessoas no interior delas.
O Sr. Secretário não está sozinho em suas preocupações quanto ao momento certo de se retornar às atividades presenciais. Todo(a)s aqueles (estudantes, professore/as, pais, mães ou responsáveis) cujas vidas estão conectadas com o cotidiano escolar estão imersos na angústia desse retorno, pelas razões mais diversas, mas entre elas se impõe uma: a preocupação se a vida de cada um e de todo(a)s será preservada e quanto a possibilidade de provocarmos novas mortes em razão das possíveis redes de contágios.
A leitura superficial da postagem do Sr. Secretário parece nos indicar uma visão (superficial?) muito presente em vários gestores de que a educação é um serviço que se estrutura em dois pilares: o profissional contratado (para prestar o serviço) e a estrutura física (segura o suficiente para aqueles que procuram o atendimento). Coincidência ou não, assim raciocina, também, qualquer gerente de um estabelecimento comercial, inclusive uma loja de shopping center. Como eu, particularmente, não vejo a educação apenas como um “serviço”, um “bem de consumo”, tenho dificuldades de concordar com a ideia de que seja possível retomar as atividades escolares apenas dando cumprimento a essas duas condições.
Mas, analisemos as tais condições apontadas pelo Secretário que, aparentemente, seriam plenamente cumpridas no município onde ele dirige os serviços educacionais.
A primeira delas, o desemprego de profissionais que atuam na educação nos faz pensar que sua preocupação com esse contingente de pessoas indica o peso delas no contexto da estrutura de pessoal da rede. Ou seja, aparentemente, a rede depende desses contratos de profissionais não-efetivos para o funcionamento adequado dos serviços (mesmo que consideremos que se reduza os índices de aglomeração e circulação de pessoas nas unidades escolares), com a eventual redução do número de estudantes por sala/turno. Contratos que produzem insegurança no trabalho daquele(a) educador(a) – especialmente se ele(a) não estiver de acordo com a liderança política local –, mas, também, precariza a ação educativa. Algo que qualquer empresário entende muito bem: reduzir direitos, reduzir custos, intensificar as rotinas de trabalho, precarizar as relações para estabelecer laços de submissão em que, ao trabalhador, reste apenas duas opções: sua submissão ao desemprego ou submissão àqueles que garantiram aquele trabalho (eternamente temporário) naquela instituição (no caso, aqui, uma escola pública). E à escola (e sua pequena equipe de efetivos) se submeter a essa lógica, que acaba corroendo a qualidade do serviço prestado, por fora e por dentro simultaneamente.
A segunda preocupação tem a ver com as condições sanitárias de cada unidade escolar que, vista isoladamente, é algo cuja administração, parece ser mais simples, afinal, já temos um conjunto de protocolos produzidos por várias instituições (a começar pela OMS) que nos dão vários parâmetros. Aqui, as palavras do Secretário nos remetem a pensar que as escolas estariam sanitariamente preparadas para esse retorno. Embora possamos desconfiar que isso não seja uma realidade geral de todos os municípios e redes, é preciso que se tenha clareza de que as escolas, assim como lojas comerciais, não estão desconectadas dos demais espaços de aglomeração humana e essa conectividade faz o perigo da contaminação circular entre os vários ambientes. De modo que, ainda que os grupos humanos mais suscetíveis de contaminação estejam isolados das crianças, adolescentes, jovens e adultos não contaminados, o retorno às aulas implica abrir a possibilidade do contato direto desses grupos com potenciais situações de contágio vividas no contexto do cotidiano doméstico, além de outros contextos. E como não temos (nem deveríamos ter) policiais sanitários em cada esquina, em cada ônibus ou cada carro, para fiscalizar o cumprimento ou não das medidas, ficamos expostos à possibilidade de novas ondas de contágio. O que significa que, ainda que tenhamos as escolas mais bem estruturadas quanto a protocolos e equipamentos físicos (o que não parece ser verdade), os cuidados tomados não são suficientes se não estiverem articulados a outras medidas que lhes ultrapassa, porque definidas em outras instâncias, para que se possa, de fato, reabrí-las. Essa problemática se amplia na medida em que ir a um shopping center não é uma obrigatoriedade para ninguém, mas ir para a escola, sim.
Como pensamos a educação como direito e não um mero “serviço”, nem farei menção às preocupações relacionadas à garantia de que todo(a)s o(a)s estudantes possam ser atingido(a)s pelas ações educativas, especialmente o(a)s jovens e adulto(a)s da EJA, das escolas do campo, aquele(a)s que não têm acessibilidade remota, mas seria interessante que o Sr. Secretário fizesse menção às estratégias que estão sendo pensadas e definidas em seu município para superarem esses desafios.
A pandemia tem exigido que pensemos “sistemicamente”, muito mais que “sistematicamente”, isto é, partir de movimentos articulados entre setores sociais e institucionais distintos, ao invés do tradicional (e mais fácil) “cada um de acordo com sua consciência”. Aliás, a lógica do “cada um com sua consciência” pintou a praia de Ponta Negra, em Natal, com as cores da irresponsabilidade, semanas atrás, quando a Prefeitura de Natal resolveu flexibilizar a proibição de circulação na orla. Essa lógica, também, pinta discursos, aqui e ali, de gestores municipais que se agarram à sua “soberania territorial” para justificar seus desejos de decretar o retorno às atividades escolares. Continuam pensando com a lógica pré-pandemia e, estranhamente, não veem que a realidade do vírus é a lógica da rede. Não a lógica atuais de nossas redes de ensino, desconectadas uma das outras, cada uma cuidando de si mesmas, mas a lógica das redes sistêmicas, em que cada organismo depende do outro para sua constituição e existência.
A pandemia tem desnudado a íntima associação entre política e vida. Cada decisão de cada indivíduo e de cada instituição pode salvar vidas ou produzir mortes em menos de uma quinzena, porque o vírus amplia os seus efeitos mórbidos a partir de nossas proximidades, dando-nos uma imensa responsabilidade, a um só tempo individual e coletiva, sobre nossas próprias vidas e das pessoas que nos cercam e que amamos, inclusive aquelas de quem não gostamos ou somos inimigos.
Vida e morte nunca esteve tão perto nesses tempos de pandemia. Defender o uso dessa ou aquela estratégia de combate aos efeitos do vírus, está alinhado a uma determinada visão “política” sobre vida e morte, sobre os custos (inclusive em termos do número de vidas salvas ou não) para se manter uma ou outra estratégia. Por isso que não vejo como um “mal” a ser denunciado o que alguns chamam de “politização” do vírus ou da pandemia. O vírus e a pandemia trouxeram para o centro do debate político nossas concepções de vida e morte, porque esgarçou o que se pensava antes. Diante dos discursos (políticos) de defesa da redução de impostos e do tamanho do Estado e de ampliação da precarização dos direitos trabalhistas, a pandemia mostrou a importância daqueles outros (discursos políticos) que propugna(va)m o fortalecimento dos equipamentos públicos de saúde e de proteção social (programas de renda mínima e fortalecimento das leis de proteção ao trabalho).
Como costumo dizer nos encontros que tenho tido com colegas professore(a)s, o vírus nos interpela a refletir sobre como nossa cultura, comportamento, visões de mundo, anteriormente à pandemia, nos permitiu e foi fator causal para o que estamos vivendo agora. E quando falo “nossa”, digo de todo(a)s nós, expressas nas várias dimensões de nossa existência. Se a maioria das pessoas ainda se apega a notícias falsas que circulam por aparelhos de celular para organizarem e definirem suas condutas cotidianas, é sinal de que, enquanto educadore(a)s, não demos a devida importância a pautar em nossas aulas as tais fakenews, não consideramos o uso dos aparelhos celulares como ferramenta pedagógica e, pior, talvez tenhamos deixar parecer que o conhecimento (científico) da escola não serve para a vida das pessoas, mas apenas para elas obterem certificados, cruzarem as etapas de escolarização e/ou conquistarem um cargo melhor no mercado de trabalho.
O coronavírus já existia entre nós. Apenas sofreu uma mutação, ou seja, mudou. Nos interpela, assim, a uma mudança nossa, porque questiona um conjunto de aprendizados circulantes entre nós: o aprendizado de que o individualismo é o fundamento das nossas escolhas e destinos e que não precisamos de comprometimento com processos democráticos e decisões coletivas; a ideia de que o conhecimento científico serve apenas para ser traduzido como conteúdo memorizável, para sua posterior devolução, por parte do(a) estudante, à(o)s nossa(o)s professore(a)s, nas "provas", ou em processos seletivos a que as pessoas se submeterão para conquistar uma posição no mercado de trabalho. Se aprendemos tudo isso, nossas condutas refletirão isso.
Se as pessoas (especialmente os que atualmente são gestore/a/s público/a/s) continuam pensando que a promoção da vida de todos não depende das decisões conectadas entre sujeitos distintos, mas que, pelo contrário, cada um é responsável apenas pela própria vida, é sinal de que talvez a solidariedade e o sentimento de pertencimento a coletivos não foram pautas seriamente levadas a efeito em nossos currículos e em nossas práticas docentes. É sinal de que a democracia, como forma de organização das decisões coletivas, não foi uma prática tão disseminada em nossos projetos pedagógicos até agora.
E aí me ocorre que, talvez, então, seja necessário pensarmos que a decisão do retorno ou não às atividades presenciais nas escolas não seja uma decisão de gestore(a)s público(a)s encasteladas em espaços herméticos, por mais bem intencionado(a)s que estejam, mas resultado de uma consulta real e efetiva às comunidades escolares, na forma de um plebiscito ou referendo.
Talvez eu esteja fazendo uma tempestade em um copo d'água ou, melhor, fazendo um shopping center em uma pequena bodega...talvez...
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