Dias de "confusão" na educação de Natal

"Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro". (Mateus 6:24)



Eu não sei se o Prefeito Álvaro Dias é cristão. Eu não sou, mas essa passagem bíblica (como tantas outras) traduz um ensinamento útil para qualquer um, independentemente de crença, porque nos apresenta um imperativo ético: não há como se dedicar a polos antagônicos impunemente. E aqui não cabe confundir “antagonismo” com “diferença”, pois nem toda diferença implica antagonismo, embora todo antagonismo envolva posições substancialmente distintas.

Também não sou físico ou químico, mas aprendi que qualquer ação que pretenda misturar óleo e água, em condições normais de temperatura e pressão, ou é fruto de um autoengano ou falácia. No primeiro caso, podemos debitar na conta da falta de estudo sobre o assunto. No segundo, uma clara tentativa de ludibriar a boa fé dos outros.

Falta de estudo e tentativa de ludibriar a boa fé das pessoas, por vezes, compõem o conteúdo de boa parte do repertório de iniciativas de políticos. E quanto a isso é dever nosso o de propor a discussão, a bem do esclarecimento público.

É o que me ocorre ao saber que a Prefeitura de Natal optou em aderir ao programa das escolas militarizadas do Governo Federal, ao mesmo tempo em que decidiu implementar um programa de alfabetização de jovens, adultos e idosos, que se inspira no chamado “Método Paulo Freire”.

Afinal, como explicar que o mesmo gestor que se propõe a implementar uma proposta pedagógica que se funda no diálogo, na problematização da realidade, na emergência do pensamento crítico e na horizontalidade da relação entre educador e educando em um programa, possa aderir a outro que se estrutura pedagogicamente em princípios totalmente antagônicos?

Já ouvi alguém defender tal conduta do Prefeito pelo viés de que ele estaria, na verdade, sendo bastante democrático, na medida em que estaria respeitando a diversidade de modelos e garantindo que as famílias tivessem a opção de escolha por um ou outro modelo, no caso, o de escola militarizada e a escola não militarizada. Trata-se, em outros termos, de usar o argumento democrático para apunhalar a democracia, pois sob o manto da “liberdade de escolha” se apresenta um modelo pedagógico que em sua essência atenta contra o conceito democrático que supostamente orientaria a decisão da Prefeitura.

Ora, o modelo pedagógico que sustenta uma escola militar ou militarizada preza por princípios que são totalmente contrários ao de qualquer instituição democrática e menos ainda ao pensamento paulofreireano. Supõe os humanos como sujeitos moldados para agirem ferozes contra inimigos e submissos aos seus comandantes. São parte de uma engrenagem voltada à guerra, por isso não há espaço para a dúvida ou subjetividades, mas apenas o cumprimento estrito de ordens emanadas de um lugar controlado por autoridades inamovíveis e inquestionáveis. Em tal contexto, a disciplina que se exige é a da obediência cega e servil, emoldurada por uma permanente aura de medo. Quando em guerra, o medo se dirige a um inimigo externo, claro e determinado. Quando em períodos de “paz”, o inimigo é invisível, intestino e perigoso porque se abriga nos desejos interiores da subjetividade, antro da dúvida, dos questionamentos e, no limite, da insubordinação.

Ou seja, pressupostos totalmente distintos e opostos àqueles que norteiam o pensamento de Paulo Freire, que aponta para o aflorar das subjetividades, especialmente naquilo que trazem de expressão das conflitividades sociais, dentro de um contexto de diálogo horizontal entre aqueles (educador e educando) que ocupam lugares distintos, mas encontram-se no mesmo mundo. Estar em lugares distintos não implica o respeito cego a uma hierarquia, mas o reconhecimento de que cada um traz “bagagens” distintas de conhecimento e saberes. E somente na troca desses conhecimentos é que ambos (educador e educando) se reconhecem como participantes do processo educacional e que crescem (individual e coletivamente) nele.

Essa perspectiva democrática, ao contrário do que pensam os advogados das escolas militarizadas, não implica falta de disciplina, mas, pelo contrário, só subsiste em razão de uma forte disciplina. Só que de outro tipo: envolve (e exige dos sujeitos) o disciplinado respeito às opiniões alheias e o disciplinado exercício de ouvir o contraditório sem se sentir ofendido e tentar, a despeito disso, construir consensos. Envolve uma disciplinada humildade de se reconhecer não sabedor de tudo e um disciplinado desejo em conhecer mais, não através de fórmulas prontas, mas do exercício da problematização da realidade.

Assim, juntar Paulo Freire e a Pedagogia Militar num mesmo saco significa que ou estamos diante de um projeto educacional esquizofrênico ou de mais uma demonstração de indigência cultural de nossos dirigentes, que falam com entusiasmo e autoridade sobre o que não leram ou leram, mas não entenderam.

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