São Paulo é aqui? ou Sobre o redimensionamento da rede pública estadual.

Em 2014, os estudantes de São Paulo ocuparam escolas da rede pública estadual em protesto contra o processo de reorganização da rede implementada pela Secretaria Estadual de Educação. Foram meses de (in)tensas negociações em face de medidas que implicavam no fechamento de várias escolas, em nome da racionalização da oferta dos serviços públicos educacionais. O desgaste da gestão foi imediato, a ponto do então secretário deixar o cargo e o governador Alckmmin suspender os efeitos do dispositivo legal utilizado à época.
Avaliação quase unânime naquele momento (e ainda hoje) aponta que o maior equívoco, originário daquela crise, estava na condução autoritária e pouco transparente do processo. A comunidade escolar, via de regra, era convidada para ser informada sobre as medidas. Os gestores não queriam saber a opinião dela sobre tudo aquilo, mas apenas como se adequariam às situações que seriam criadas a partir da implementação das medidas. Isto é,  não se tratava de ouvir a comunidade ou construir com ela uma proposta de reorganização da rede, mas de expor um traçado da própria secretaria dentro do qual pais, mães, estudantes e professores teriam que se adaptar.
Aqui no RN, a SEEC-RN resolveu copiar a ideia paulista com o nome de “redimensionamento”. Lamentavelmente copiou não apenas o conteúdo, mas também a forma. E agora, vê-se diante de estudantes ocupando as instalações físicas da secretaria e já começa a encontrar reações entre pais, mães e professores, insatisfeitos com o que está por vir.
Ora, é indubitável que temos problemas na rede estadual. Na verdade, o problema está na rede pública de educação básica como um todo, resultado de anos e anos de baixa ou inexistente articulação entre os municípios e o Estado. Nunca se conseguiu que esses entes abandonassem suas visões apequenadas e provinciais para se ocupar de um planejamento de oferta que respeitasse a capacidade instalada (física e humana) e a demanda territorialmente identificada. Ainda gracejam aqui e ali determinadas práticas pouco republicanas de diretores que favorecem professores amigos com turmas que só existem nas estatísticas burocráticas e que somente são identificadas quando o órgão central da Secretaria tem que por em funcionamento seu monitoramento (o que não é fácil sob circunstâncias de corte de diárias e redução do quadro de profissionais para as atividades-meio).
Também sabemos que a maioria das nossas escolas foi construída numa época em que não se obedecia a critérios mínimos de planejamento adequado quanto ao tamanho, localização e identificação de demanda. Nos últimos 20 anos, tivemos substanciais mudanças na educação (com a extensão do ensino fundamental para 9 anos, a incorporação da educação infantil e o Ensino Médio como Educação Básica, e os programas de educação técnica e profissional e programas de ampliação da jornada escolar, como o Mais Educação) que demandam estruturas que nossos prédios escolares ainda não estão adequados para dar conta delas.
Diante de tantos problemas, a proposta de redimensionamento da rede parece óbvia, como óbvio é que a organização das escolas por ciclos ou etapas facilita a gestão (não apenas administrativa, mas também pedagógica). Mas essa diretriz não pode ser aplicada rigidamente sem considerar, antes de tudo, as necessidades postas pelos beneficiários do serviço: as famílias. A escola deve ser funcional à vida das pessoas e não as pessoas terem que se desdobrar para facilitar a vida dos gestores das escolas. Pensemos em uma família cujos filhos estudam em níveis distintos (Ensino Fundamental e Ensino Médio) e que se organizam para que eles estejam na mesma escola em razão da facilidade que isso representa para os pais que trabalham fora? Questões como essas escapam a um planejamento meramente pedagógico ou administrativo.
Mas, a SEEC-RN optou por um caminho que se traduz, primeiro, pela falta de transparência na apresentação da proposta de mudança. Não foi divulgado publicamente nenhum documento que explicitasse que escolas seriam e as que não seriam atingidas, como ficará a rede antes e depois das mudanças, como ficarão projetos e ações de melhoramento da aprendizagem, desenvolvidos heroicamente por professores ou parceiros, e, sobretudo, como essa proposta se articulará com as redes públicas municipais. E sem esse documento como pactuar com as comunidades escolares procedimentos e decisões? Que ideia de gestão democrática essa gestão atual da SEEC-RN tem em mente?
É preocupante, também, constatar como os termos da portaria do redimensionamento da rede pública estadual é funcional e se antecipa às intenções da PEC 55 (a tal PEC dos limites de gastos), da Medida Provisória da reforma do Ensino Médio e joga na lata do lixo as metas do Plano Estadual de
Educação, na medida em que se revela como economizadora do investimento público na educação, especialmente quando vemos o estabelecimento de limites mínimos para a abertura de turmas.
Ora, toda a discussão recente sobre qualidade do ensino tem apontado não para limites mínimos, mas limites máximos. A título de exemplos, poderíamos citar:
a) A aprovação, pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara de Deputados, em 7 de novembro de 2007, de substitutivo aos projetos de lei 597/07, do deputado Jorginho Maluly (DEM-SP), e 720/07, do deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), que estabelece limite máximo de 25 alunos por professor, durante os cinco primeiros anos do ensino fundamental; e de 35, nos quatro anos finais do ensino fundamental e no ensino médio;
b) A aprovação, pela Comissão de Educação e Cultura do Senado, em 16 de outubro de 2012, de projeto de lei do Senador Humberto Costa (PT-PE), no qual se prevê que as turmas do 1º e do 2º ano do ensino fundamental da rede pública deverão ter no máximo 25 alunos, enquanto que no caso das demais séries dessa etapa e do ensino médio, o limite é 35 estudantes;
c) Parecer n. 8/2010 – CNE/CEB, de autoria do Conselheiro Mozart Neves Ramos, aprovado em 5 de maio de 2010, que estabelece normas para aplicação do inciso IX do artigo 4º da Lei nº 9.394/96 (LDB), que trata dos padrões mínimos de qualidade de ensino para a Educação Básica pública, pelo qual se prevê como limite máximo para a composição das turmas de Ensino Fundamental – Anos Iniciais, 24 alunos, para as turmas de Ensino Fundamental – Anos Finais, 30 alunos, e para as turmas do Ensino Médio, 35 alunos.
d) Documento Final da Conferência Nacional de Educação (2015), que propõe o máximo de 20 alunos para as turmas de Ensino Fundamental – anos iniciais – e 25 – anos finais, e 30 alunos para o Ensino Médio, como critério para a construção do CAQ – Custo Aluno Qualidade.
Vê-se, portanto, que a perspectiva predominante nas várias iniciativas relevantes mais recentes, em nosso país, busca estabelecer, a bem da preocupação com a qualidade do ensino, um limite máximo e não limites mínimos.
Ainda que seja razoável se pensar em limites mínimos – pensando-se em termos de racionalidade da oferta – é preciso que se tenha um mínimo de bom senso para que os limites não ultrapassem os marcos das demandas reais e, principalmente, sejam estabelecidas de forma a não serem utilizadas para o constrangimento à garantia do direito. E, no caso em tela, na medida em que a portaria estabelece um número acima daquilo que se tem convencionado como limite aceitável sob determinados padrões de qualidade podemos concluir que se vislumbra duas possibilidades:
a) Situações em que o não alcance dos limites mínimos impliquem na negação da abertura de uma turma, configurando, portanto, a subtração do direito àqueles grupos de cidadãos que, somados, desafortunadamente não alcançarão as quantidades mínimas previstas na portaria;
b) Situações em que turmas infladas pela pressão de se cumprir os tais limites mínimos, importarão em processos pedagógicos mais precarizados, importando em prejuízos de aprendizagem.
A atual gestão da SEEC-RN tem ainda a oportunidade em mudar a direção. Os estudantes em mobilização deixaram a ocupação do prédio da secretaria com o compromisso da Secretária e do Governador de que esse processo será acompanhado por um fórum constituiído por representantes do Fórum Estadual de Educação, SINTE, Estudantes e Gestão da Educação, mas ainda não se sabe quando esse fórum se reunirá e qual o poder que terá para, de fato, intervir e eventualmente redirecionar esse redimensionamento. E enquanto isso não acontece a Secretaria vai realizando reuniões para convencer as comunidades escolares de seus propósitos. O que é legítimo, mas já significa desrespeitar as preocupações expostas pelos estudantes que ocuparam o prédio da SEEC.
A atual gestão da SEEC pode fazer algo melhor que os paulistas fizeram. E, se assim proceder, dará uma aula para quem pensa que tudo que vem de São Paulo é bom e bacana, e mais ainda, poderá dar uma aula de gestão democrática, envolvendo todas as comunidades escolares em um processo que interessa a todos e não apenas a especialistas em educação ou em gestão.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Briga na Procissão, de Chico Pedrosa

A intempestividade da proposta de desfiliação do ADURN ao PROIFES

PROIFES e ANDES-SN: quando enfatizar diferenças é sinal de fraqueza