Sobre a criação da Banca de EJA da rede pública municipal de Natal

Circula, no âmbito de uma comissão existente dentro da Secretaria Municipal de Educação para discutir a organização da modalidade EJA na rede municipal, a proposta de criação de uma Banca Municipal de Exames e Certificação da Rede Municipal de Natal – BME. A proposta emerge no contexto em que denúncias e mobilizações contra o fechamento d
e turmas de EJA na rede pública municipal ganharam menção em jornais locais, inclusive com manifestações em frente à sede da Prefeitura dias atrás.
Pelo que está sendo discutido na comissão, a BME atenderá estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental que estejam, no mínimo, com 15 anos de idade, e os estudantes matriculados na EJA da rede municipal (níveis III e IV), que tenham sido reprovados em até 2 componentes curriculares, os quais, através da BME, teriam a oportunidade de se submeterem a um (ou mais) exames, sem interrupção de suas respectivas matrículas. Em caso de aprovados nesses exames, os estudantes teriam a garantia da continuidade de suas respectivas trajetórias escolares.
Quem lida com a realidade da EJA sabe que a relação que os sujeitos têm com a escola é de intermitência, isto é, um entrar e sair permanente. Em alguns casos, trata-se de jovens-adultos e adultos trabalhadores, cujas condições de vida e do próprio trabalho são determinantes para a baixa frequência e o consequente baixo rendimento. Em outros casos, temos jovens que não necessariamente trabalham, mas que são oriundos da educação básica regular, onde, por uma série de razões não se adaptaram e foram “migrados” de lá para a EJA.
Um problema que temos é que parte dos gestores e professores enxergam apenas os movimentos de saída dos estudantes, ressaltando as altas taxas de “evasão” que em média atingem 50% dos matriculados. Mas o que se observa, em contrapartida, é que esses estudantes se “evadem”, mas retornam à escola no período seguinte. Por isso que é mais adequado falarmos em “intermitência” como o fenômeno mais presente na EJA do que simplesmente um dos aspectos dele que é a “evasão”.
Esses sujeitos vivenciam situações de “fracasso escolar” e enfrentá-las é um dos maiores desafios pedagógicos para gestores, pesquisadores e professores, mas também é um desafio para os próprios sujeitos que só conhecem um modelo pedagógico: exatamente aquele que não os seduziu ou não se mostrou adequado às suas especificidades.
Assim, qualquer proposta de ação que busque superar essas situações de fracasso escolar que não observe a necessidade de modificar o modelo pedagógico vigente nas escolas que oferecem a EJA, estará fadada a apenas provocar alterações superficiais. E, infelizmente, essa parece ser a marca da ideia da criação da BME, mas antes de falarmos da questão do modelo pedagógico, importa apontar outras incongruências da proposta.
Primeiramente, a proposta implica a criação de um instrumento que o próprio sistema educacional já oferece que são as Comissões de Exames de EJA, instaladas em três escolas da rede estadual de educação básica (os Centros de Educação de Jovens e Adultos Lia Campos e Felipe Guerra, e na Escola Estadual João Tibúrcio). A criação de uma nova estrutura implicará na alocação de professores para esse trabalho, o que significa que a Secretaria estará deslocando professores que poderiam estar atuando na EJA presencial, para esse trabalho na BME.
Mais adequado seria, anteriormente à criação da BME, a Secretaria procurar a gestão estadual e ver alternativas de articulação com as demandas da rede pública municipal, algo que seria muito educativo para ambas as gestões (a do município e do Estado), sem falar no exercício, sempre bem-vindo, de articulação entre sistemas, posto como reclame em vários documentos oficiais, nacionais (como o Plano Nacional de Educação) e internacionais (como a Carta de Belém, da Conferência Internacional de Educação de Adultos, de 2009) e encontros entre instituições atuantes na EJA (como os Encontros Nacionais de Educação de Jovens e Adultos, que agregam os vários fóruns estaduais de EJA).
Em segundo lugar, ao criar a BME, a Secretaria parece não querer enfrentar o problema das reprovações junto àqueles que estão diretamente relacionados a ele, isto é, os professores das escolas. Assim, ao invés de mobilizar as equipes pedagógicas e os professores para uma reforma do modelo pedagógico em cada escola, de modo que a problemática das reprovações (seja por desempenho, seja por baixa frequência) seja analisada e sua solução pensada no âmbito de cada escola, a SME induz que o problema seja transferido para a BME, cujos professores não têm um relacionamento cotidiano com os estudantes considerados reprovados, o que parece sugerir que os profissionais terão uma relação com o público atingido pela BME, mediada, apenas, pelas notas alcançadas pelos sujeitos, informadas pelas escolas onde estavam matriculados.
Uma vez implementada a BME os estudantes considerados reprovados, ao invés de terem suas trajetórias equacionadas no âmbito das escolas em que estudam, com os professores com os quais se relacionaram, em processos de autoavaliação (tanto dele como dos próprios professores), se dirigirão a outra escola (com o agravante de, possivelmente, não ser próxima de suas residências), para se submeterem a provas previamente pensadas, sem terem em vista, sequer, a possibilidade de vivenciarem novas orientações ou novos processos de ensino e aprendizagem, já que o papel da BME é, tão somente, aplicar as provas e não necessariamente o de desenvolver uma nova dinâmica de aprendizagem com o estudante.
Temos, portanto, a perda de atribuição de gestão pedagógica integral dos processos de aprendizagem dos estudantes, por parte das escolas, na medida em que os considerados reprovados seriam encaminhados para a BME. O repasse dessa atribuição das escolas para a BME implica numa espécie de silenciamento do próprio sistema sobre as razões da reprovação, o que, sub-repticiamente, sugere que o problema da reprovação seria unicamente do próprio estudante, isto é, o reforço a uma responsabilização individual dos sujeitos, como se não existissem outros fatores influentes (e que precisam ser pensados) nesse fenômeno das reprovações e “evasão” na EJA. Sem falar que o procedimento do encaminhamento do sujeito da escola em que foi reprovado para um outro espaço, cristaliza um movimento de “apartação” do sujeito, reforçando o caráter excludente do processo de avaliação.
A Secretaria poderia fazer diferente.
Recentemente, em uma audiência pública na Câmara Municipal de Natal, cujo tema era o “fechamento da EJA na rede pública municipal de Natal”, professores e estudantes da rede estiveram presentes e comunicaram à representação da SME os seus temores pela forma como a EJA está sendo conduzida. Diante da informação de que existia uma comissão instalada para pensar a reorganização da EJA na rede, viu-se a importância de que a comissão agregasse novos nomes e na própria audiência pessoas presentes manifestaram interesse em compor a comissão. Os nomes foram encaminhados oficialmente pela vereadora autora da audiência para a Secretaria, a qual, até o presente momento, ignorou completamente.
A questão das reprovações e da “evasão” na EJA, estão relacionadas a um descompasso entre o modelo pedagógico vigente na rede e as especificidades dos sujeitos que procuram a modalidade EJA. Esse descompasso se revela de várias formas: (a) as escolas não estabelecem relações sólidas com as comunidades do seu entorno, nem mesmo para fazer a chamada pública dos jovens e adultos pouco escolarizados, isto é, ao invés de se colocarem publicamente como espaços para promoverem a escolarização dos sujeitos, elas “aguardam” que eles as procurem; (b) a organização do trabalho pedagógico, na maioria das escolas, não se coaduna com a dinâmica irregular dos estudantes, algo que é mais grave quando consideramos o público que trabalha, pois não dá para esperar desses sujeitos uma frequência regular como a que observamos dos estudantes do ensino regular; (c) o registro de frequência escolar dos sujeitos continua sendo pensada nos mesmo moldes da dinâmica do ensino regular, a partir de uma leitura restrita da legislação educacional; e (d) o pouco diálogo do currículo com as experiências de aprendizagem que os sujeitos vivenciam fora do tempo e do espaço escolar.
A EJA necessita ser repensada e isso implica se pensar na modificação dos parâmetros que organizam as práticas curriculares. Em se tratando de sujeitos que têm uma relação intermitente e traumática com a lógica tradicional da escola regular, não é possível que se imagine que na EJA deva-se manter as mesmas estruturas desse modelo. Isso significa, desde já considerar o que os sujeitos “são” fora da escola, rompendo, assim, com a perspectiva negativista que os veem apenas como os que “não têm conhecimentos”, “não têm valores”, “não conseguem acompanhar”, “não sabem o que quer”, “não têm projetos de futuro”...tantos nãos e poucos sins...
Conhecer esses sujeitos em suas “positividades” demanda que a SME estimule e organize os coletivos de professores que atuam na EJA a repensarem as práticas curriculares e as gestões das escolas manterem um contato mais próximo com as realidades e comunidades em que eles vivem, buscando articular espaços e atores presentes nesses entornos com as atividades escolares.
A problemática da baixa frequência desses sujeitos tem laços com as inadequações do formato escolar com os interesses e dinâmicas dos sujeitos, principalmente os que trabalham. O apego ao modelo pedagógico da escola regular parece ser um impedimento para que se promova mudanças na organização do trabalho pedagógico de tal modo que não apenas o currículo esteja sintonizado com a realidade dos sujeitos, mas que os mecanismos de registro de frequência traduzam o necessário diálogo da escola com os aprendizados que esses jovens e adultos realizam fora do universo escolar, especialmente no âmbito do mundo do trabalho e nos espaços de lazer e cultura.
Outra problemática diz respeito àqueles sujeitos que não se enquadram na oferta noturna da EJA. Nesse quadro temos tanto aqueles sujeitos cujo trabalho se dá no horário noturno, como aqueles jovens que pela idade ou momento existencial preferem o horário matutino ou vespertino para frequentar as atividades escolares. Para essas situações, exclusive a oferta de EJA dos Centros de Educação de Jovens e Adultos da rede estadual, não há outra alternativa e a SME poderia pensar sua entrada nessa questão.
Importante, também, o olhar sobre aquela população que sequer está se matriculando. Em que pese não existir pesquisas em escala sobre esses sujeitos, sabe-se os diversos fatores que concorrem para que boa parte dos sujeitos pouco ou não escolarizados procurem as escolas e se matriculem. Entre eles, inclusive, está a obrigação da frequência similar ao ensino regular. Para esses sujeitos, há de se organizar a oferta de cursos semipresenciais, montados em parcerias, que viabilizem a garantia do retorno desses sujeitos ao acesso à dinâmica de estudos visando a conclusão dos ensinos fundamental e médio.
Por fim, o esforço de repensar o modelo pedagógico da EJA na rede municipal, precisa ser coletivo, isto é, envolver os professores que atuam na modalidade, formatando com eles uma nova proposta curricular e, consequentemente, uma nova estrutura de carga horária condizente; envolver, também, os gestores, buscando reduzir algumas resistências ainda visíveis à oferta (e manutenção) da EJA nas escolas da rede; e envolver o estudante, mobilizando-o, colocando-o no protagonismo dos processos pedagógicos.

Comentários

Anônimo disse…
Excelente texto visto que o seu conteúdo expressa com fidedignidade o contexto no qual se insere a problemática da EJA. Concordo com a análise e com as propostas apresentadas e sugiro que provoquemos os sujeitos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem dessa modalidade para que a SME se posicione e abra espaço para a discussão e implementação das mudanças necessárias.
Desde já me coloco a disposição para contribuir com essa empreitada.
Att. Prof. Liceu Luís de carvalho - E.M.Prof. ULISSES DE GÓIS.
Anônimo disse…
Insatisfeita.
Não resta dúvida que mudanças e adequações devem ser feitas, não somente, na rede municipal, mas em todos os programas da EJA, administrados ou não pelo Governo Federal. Eles até podem ter bons formatos, mas que na verdade se transformam em tentativas fragilizadas e fragmentadas em suas execuções. Já fui professora do "Brasil Alfabetizado" em várias edições, umas com coordenações boas, outras sem classificações. Acredito num modelo diferente de ensino, "O vivencial" Muitos eventos culturais, visitação de lugares turísticos, patrimônios históricos, informatização, teatro, danças e músicas de todos os ritmos,movimento, atitudes e prazeres de ambos os lados, professores e alunos.

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