A essa altura do campeonato, parte 2 ou O significado das lutas nas ruas.



Em minha última postagem utilizei-me da metáfora futebolística para me referir ao processo político que estamos vivenciando. Dizia que o time “de cá”, em favor da democracia, encontrava-se tal qual uma equipe a qual ainda tem 30 minutos até o fim do jogo. O time adversário joga completo e ganhando, enquanto o time de cá já fez o máximo de substituições possíveis, o atacante homem-gol joga, mas machucado, sem poder de fogo e a defesa teve seu melhor zagueiro e o goleiro expulsos, restando, assim, o improviso de colocar um dos jogadores de linha para atuar como goleiro. Meu amigo Fábio sugeriu que eu acrescentasse que nesse jogo os árbitros estão todos comprados...verdade trágica e certeira.
Apontei algumas questões relacionadas ao traço da estratégia dos golpistas e encerrei chamando atenção que, para mim, o time “de cá” precisa montar novo esquema tático e mesmo nova equipe, novos nomes, na medida em que se abre um novo período de disputas cujo território não se resume ao campo eleitoral, mas se dirige às ruas. As ruas são, assim, o “novo” território das lutas vindouras, junto com as múltiplas instituições sociais, movimentos, articulações e redes que se gestam fragmentariamente tanto em redes virtuais como em ações concretas que intervêm nos espaços públicos.
Essa fragmentação lembra, em parte, a rearticulação da capacidade “movimentalista” que a esquerda brasileira demonstrou ter, desde os fins dos anos 1970, com o fim da ditadura militar, desdobrando-se por toda a década de 1980, estimulando o surgimento de numerosas instituições de classe e movimentos sociais responsáveis por várias conquistas de direitos básicos da cidadania. Mas, hoje – e isso é bastante positivo – esse proliferar de ações e redes torna muito mais rica a pauta social, cultural e política. E a esquerda precisa recuperar a capacidade de dialogar organicamente com essa pauta.
Rearticular essa capacidade é um elemento central não apenas face à luta política imediata contra o movimento golpista em curso, que exige uma complexa articulação com novas tecnologias e dinâmicas organizativas dos coletivos políticos emergentes, mas também porque estamos diante de um avanço firme e acelerado de referências culturais fascistas, atravessando o tecido social, ameaçando conquistas democráticas que remontam exatamente às lutas empreendidas pelos diversos segmentos da esquerda brasileira logo após o fim da ditadura militar.
Esse movimento cultural fascista se revela, por exemplo, nas explícitas intimidações às práticas pedagógicas de professores que se aventuram a explorar temas políticos em suas aulas ou àqueles que têm a coragem de discutir as relações homem/mulher e os direitos humanos. Bem pior que isso, vemos também sua materialização em pequenos grupos de jovens e adultos covardes que se organizam para fazer intimidação pública de casais homoafetivos e personalidades públicas afro-brasileiras; o espancamento ou linchamento de pessoas suspeitas ou que tenham cometido assaltos ou outras violações da lei; como também no ataque a templos de religiões dos Povos de Terreiro e a prédios de sindicatos e partidos políticos de esquerda. Os livros de história nos mostram que processos semelhantes (considerados os devidos contextos) aconteceram na Itália e na Alemanha, nos anos 1920 e 1930, antecipando os eventos trágicos que dominaram a Europa até o desfecho da 2ª guerra mundial.
Mas ao se pensar o jogo que se deve jogar nas ruas, onde a esquerda reinou “sozinha” e soberana até dois anos atrás, implica reconhecer que a relação do PT com elas, as ruas, sofreu modificações desde que o partido incorporou a rotina da gestão estatal. Essas modificações, por outro lado, não são inteiramente estranhas se observarmos a história da esquerda mundial. Vários estudiosos da ciência política já analisaram esse fenômeno em que partidos com forte inserção nas classes populares progressivamente se “desap(r)egam” dos movimentos sociais na medida em que “ap(r)egam” em demasia à lógica e aos mecanismos do Estado. Desde Gramsci, passando por Cerroni e Przeworsky.
O problema é que as ruas também se constituíram recentemente em território da direita (a qual tem arrastado e pautado setores que poderiam estar à esquerda). E essa direita não dá sinais de que deverá abandoná-las. Pelo contrário, nos últimos anos configurou-se uma militância de direita que não pede licença aos partidos da própria direita para destilarem sua pauta de ódio nas ruas, com atos intimidadores e violentos.
Há de se estar atento também ao vácuo político deixado pelos governos petistas em relação à disputa hegemônica dos segmentos sociais beneficiados pela implementação de políticas públicas de caráter inclusivo nos últimos anos. A impressão que se revela é de que a opção petista (e da parte da esquerda que considerou essas políticas um avanço) foi o de acreditar que “naturalmente” ou “espontaneamente” os beneficiados se converteriam em apoiadores do governo e do projeto que ele encarnava. Aparentemente desdenhou-se que parcelas desses segmentos sociais, alçados a uma nova condição social, poderiam pleitear pela qualidade dessas novas condições, turbinando, por exemplo, as insatisfações quanto à situação da saúde, educação e segurança, bem como, o natural questionamento de como recursos públicos deixam de serem investidos nos serviços para abastecer esquemas de corrupção. Face à ausência de uma política comunicacional do governo e das esquerdas a ele alinhadas de disputa hegemônica sobre esses setores, parte deles foram atraídos pelo discurso “anti-corrupção” da direita golpista. Aliás, a ausência de uma política comunicacional da esquerda nesses últimos 12 anos é uma questão que está entalada na garganta de muitos militantes da democratização dos meios de comunicação.
O governo petista se distanciou das ruas, somente recorrendo a elas quando esteve ameaçado (como foi o caso dos segundos turnos de 2010 e 2014). Mas a militância, também, andou anestesiada, meio que acreditando no “piloto automático” das conquistas sociais alcançadas nesses últimos anos, como se isso “magicamente” produzisse taxas de aprovação e garantias de legitimação política suficientes para produzir boas performances na agenda eleitoral, mas que revelaram-se frágeis em fortalecer a conquista de uma hegemonia cultural e política.
A disputa das ruas está reinaugurada. E fazer com que esse enfrentamento político e cultural não seja obra voluntariosa de grupos isolados, mas resultado da conjunção permanente de numerosos sujeitos sociais é tarefa complexa e supõe, entre outras questões, a superação de fronteiras partidárias e cristalizações entre grupos, muito comuns no ethos movimentalista gestado na esquerda, que mais distancia que aproxima, que mais desagrega que une. Com isso, não apenas teremos condições de fazer um enfrentamento político-cultural consistente, mas também, refundar a esquerda em nosso país, tarefa esta para a qual os movimentos sociais e as articulações de grupos virtuais já apontam sinais frutíferos nessa direção.
Mas isso é tema a próxima postagem.



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