Impressões sobre a Festa de Santana, 2, o Auto de Santana

Apesar de não conseguir postar tudo o que gostaria na velocidade que considero oportuna, não gostaria de deixar de comentar O Auto de Santana que assisti na Festa da Padroeira de Caicó deste ano.
Para quem não sabe, o Auto de Santana é um espetáculo teatral montado com artistas locais e encenado em Caicó e Currais Novos (lá também tem Festa de Santana em período bem próximo).
Conversando com algumas pessoas da produção fiquei surpreendido ao saber que tiveram apenas 22 dias de ensaio. Pessoas que conhecem o processo de produção por dentro sugeriram que o órgão estadual de cultura não concordou com a proposta apresentada pelos atores locais de que toda a produção (trilha sonora, filmagem, cenário, texto, direção, etc.) fosse feita por pessoas da região. Ao que parece, pretendiam que o processo de produção (técnica, artística e conceitual) continuasse dirigido por profissionais já consagrados da capital. Via-se a emoção dos profissionais (especialmente os atores e atrizes) em conseguirem levar a cabo um processo de produção que parecia fadado ao fracasso, como resultado de uma sutil sabotagem do pouco tempo.
Há um grande desafio em espetáculos como esse que é contar uma mesma história, todos os anos, o que exige que isso seja feito, a cada ano, de uma forma diferente. Para quem escreve, pensa e realiza, trata-se, sempre de, ao mesmo tempo, buscar surpreender os locais que assistem o espetáculo todos os anos, e fazer com que aqueles que assistem pela primeira vez possa se apropriar daquele conteúdo que é, essencialmente, o de mostrar a devoção daquele povo àquela santa.
Nos outros anos, assisti espetáculos cujo texto trazia consistência e beleza, mas tinha uma óbvia generalidade na celebração do povo sertanejo e de Santana. Ficava claro que os autores não "viviam" ali...O texto deste ano, escrito pelo professor Félix, por sua vez, conseguiu trazer e mostrar os elementos vitais do mito fundador da cultura do sertão seridoense (poderia citar o sertanejo "jogado" no meio do sertão sem outra proteção que não sua própria fé, o touro que o ataca e a devoção à Santana que o salva).
Nele, o sertanejo é partejado sob as bençãos e cuidados dos quatro elementos naturais (fogo, água, ar e terra). Tendo perdido uma vaca, o sertanejo clama por todos os santos e santas católicos. Como efeito, os quatro elementos, enciumados pelo sertanejo ter procurado ajuda dessas entidades, castigam o sertanejo com o envio de um touro ameaçador. Em cena, vemos uma criatura que se compõe dos sete pecados capitais que são derrotadas quando o sertanejo, lembrando-se de que aquele dia é o dia em honra a Santana,  clama sua proteção. Ela chega, derrota o touro e abençoa o sertanejo.
A agradável surpresa de ver somente artistas e técnicos seridoenses mobilizados a produzir um espetáculo cuja centralidade é mostrar o cerne da própria cultura local me fizeram (re)pensar algumas questões que sempre matizaram minha relação com a cultura seridoense (ou seja, com aquele ambiente que me formou e ainda me serve como lente) e com os artistas locais (com quem compartilhei/compartilho reflexões e projetos).
Assim, o que pode parecer "xenofobismo" artístico (para aqueles que pensam que os "meninos" do interior não teriam competência para produzir um belo espetáculo) é, de fato, demonstração de maturidade e ousadia que merece apoio e desdobrar-se em ações mais consistentes de qualificação do trabalho que lá é realizado, pois, independentemente do êxito desse trabalho, permanecem as lacunas de uma baixa formação técnica; ausência de uma política cultural que implemente mecanismos e processos de manutenção de grupos e formação de platéias; e a ausência de uma visão política (e coletiva) de cultura pelos próprios artistas.
No aspecto técnico, os artistas seridoenses se mantém prisioneiros de cursos esporádicos e o refletir sobre o que se faz, nas péssimas condições em que se faz arte e cultura na região, dependentes de parcerias frágeis e circunstanciais, que não estruturam, a médio e longo prazo, qualquer projeto cultural.
Mas, como já abordei uma outra vez aqui neste espaço, não há também, da parte dos artistas locais, um projeto cultural. Ou seja, não se tem um acúmulo coletivo que defina mecanismos de financiamento e gestão de uma política cultural local; não se apresenta propostas que condensem uma política de formação técnica e de platéia; de familiarização das diversas linguagens entre crianças e jovens. Tudo é incerto. É provisório. É amador.
Por fim, há também uma questão que me parece conceitual, quanto ao sentido que atribuímos ao fazer artístico. Como qualquer linguagem, na arte expressamos conceitos, valores, mensagens, desejos, concepções. Nenhuma arte está imune a isso. A arte é o espaço, por excelência, de significar e ressignificar tudo. No caso específico do Auto de Santana, sempre que o vejo, penso (equivocadamente ou não) o quanto estamos perdendo uma ótima oportunidade de ressignificar os signos que estruturam o Mito Fundador dos próprios seridoenses. E deixamos escapar isso, reforçando todo um conservadorismo que se expressa e se lança como "naturalidade".
O texto de Félix, com todo o seu brilhantismo e profundidade, não consegue (ou não pretende) sequer dar uma "mexida" nos traços mais conservadores da estrutura mítica branca, portuguesa, cristã, que funda a cultura do sertão seridoense. Assim, a narrativa do Auto de Santana deste ano manteve o silenciamento das culturas indígenas milenares que aqui se encontravam antes dos portugueses e que foram destroçadas, restando delas pouco mais que as referências topográficas (que um observador mais cuidadoso inquirirá: "por que nomes cunhados em dialeto indígena sem que encontremos um único indígena no lugar?).
Esse silêncio, presente na lenda primeva se mantém na trama do Auto.
Na urdidura da trama, as forças da natureza se instituem como ameaçadoras ao vaqueiro na medida em que criam o Touro ameaçador, condensador de todos os pecados capitais. Aí vejo duas questões a serem tratadas: uma diz respeito à demonização (do mesmo jeito que ocorre no Mito Fundador) do Touro. Se na lenda de origem da cidade, ele é expressão de um (misterioso) espírito indígena, aqui ele aparece como resultado de uma ira (ou ciúme) das forças da natureza quanto ao apego do sertanejo com as entidades católicas. Dessa forma, o texto reforça uma visão cristã (medieval) que demonizava a adoração (pagã) aos quatro elementos fundadores da natureza e desloca a origem dos pecados capitais dos próprios seres humanos para uma entidade que lhes é exterior e nascida na natureza, contra a qual somente Santana poderia protegê-lo.
No mais, é estranho para mim ver esse sentido "demoníaco" do touro, numa região em que o gado foi base de surgimento de toda a civilização aqui reinante. Ainda mais quando vemos toda a força e beleza dos bois dos reisados e "bumba meu boi" pelo Brasil afora, dando-lhe um sentido absolutamente lúdico.
Penso que somente uma civilização totalmente desprovida de sentimento com esse animal (que o vê apenas como valor de troca ou uso) é que seria capaz de significá-lo apenas como portador do mal. Mesmo nos reisados, os bois morrem e renascem, com cores e festas, danças e músicas que o celebram.
Bem...essas observações servem apenas para dialogar com meus amigos caicoenses. São impressões esparsas que em caso de provocar um debate, poderão ganhar mais sistematicidade.
Essas observações críticas não tiram, em hipótese alguma, o valor e a importância de tudo quanto se produz por lá e muito menos o que foi o Auto de Santana. Por tudo o que foi, nas condições em que foi, é motivo de todos os parabéns.
Abraços a todos e todas

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