Conhecimento e sensibilidade

Este texto foi escrito inspirado por uma leitura do "Elogio à Educação", de Neidson Rodrigues...Me levou a pensar...Aqui vai...

Há uma tradição que associa a busca do conhecimento a uma atividade cansativa, exaustiva, sacrificiante, reservada a alguns poucos abnegados, capazes de se submeter disciplinarmente a rotinas, através das quais acumulam e reproduzem conhecimento (às vezes) para autoconsumo ou para consumo/uso dos meros “mortais”, resignados na ignorância.
Os gregos nos legaram uma interessante relação entre prazer e conhecimento, através do costume de cultuar Dionísio no templo de Apolo. Senão vejamos: Apolo, junto com sua irmã Athena, constitui o espectro de deuses da Inteligência. Os gregos recorriam a ele para que pudessem refletir à luz da razão sobre seus destinos. Mas, é exatamente no interior do seu templo, lugar da sobriedade, da luz e da razão, que os gregos também convocavam a presença de Dionísio, deus da sensualidade, do prazer e da alegria, para comemorarem feitos heróicos de seu passado histórico. Era, portanto, um momento em que o passado se transformava em presente a ser rememorado continuamente como afirmação da identidade grega. Em outras palavras o conhecimento de si, para os gregos, precisava ser socializado também como um momento permeado de festa e alegria.
Isto nos suscita duas questões importantes: a primeira delas, a de que o ato de educar precisa estar atravessado pelo prazer em conhecer, especialmente por parte do educador, mas também por parte do educando, o que implica que o processo pedagógico, deve ser pensado como prazer mútuo entre os dois agentes.
Como a relação que cada um deles estabelece com o processo se estrutura sob posições diferentes, somente através do compartilhar (partilhar com) é que o processo pedagógico ganha sentido para ambos. Se ambos compartilham um processo, ainda que estejam em lugares distintos, é preciso que o processo se volte a um mesmo caminho, um denominador comum. E, conforme nos ensina Paulo Freire, esse denominador comum é a própria realidade. É ela que se instaura como único “conteúdo” capaz de unir agentes distintos num diálogo. Como numa festa, ainda que vindos de lugares distintos, até mesmo com formas diferentes de usufruir os prazeres que ela oferece, o voltar-se à ela é que dá unidade aos festejantes.
Se não há prazer na contínua busca e descoberta da realidade e de si mesmo como ser, não teremos no ato de educar mais do que um processo burocrático, árido e pobre em torno do qual circulam seres inanimados, alienados. Todos conhecemos essa sensação: ela se manifesta de diversas formas cujas expressões são o desânimo, a perda do brilho dos olhos de quem participa do processo pedagógico, a vontade quase irresistível de não ir à escola, etc...Em suma, o não sentir-se seduzido pelo lugar, pelo espaço escolar, pelo professor, pelo estudante (ou aluno), pelo que está sendo feito...Se compara a uma festa desanimada, em que não nos reconhecemos com a promessa de alegria e farra que toda festa traz em si.
A segunda questão se refere ao conteúdo do processo de educação. Os gregos comemoravam o passado como reafirmação de uma identidade tornada presente. O passado não era um conjunto de acontecimentos distantes rememorados ritualisticamente, mas como iluminação para a compreensão do que eles eram naquele presente, pois entre o passado e o presente haviam liames nos quais se encontravam as explicações e as razões do que os gregos se entendiam ser. Como numa festa, comemoramos presentemente o cansaço e todas as coisas ruins que deixamos (por algumas horas) num limbo, num lugar imaginário que está para além daquele lugar onde o espírito de Dionísio é invocado.
Aqui a nossa reflexão deve se perguntar em que medida nos formamos educadores articulando prazer e conhecimento. O segredo desta articulação talvez esteja na identificação daquilo que concilia as necessidades de aprendizagem dos agentes, suas inquietações cotidianas e o autoconhecimento de potencialidades criativas.
Porém, a tradição pedagógica que nos cerca, ao pensar as relações educador-educando de uma forma vertical, vê no polo do educador a inexistência de necessidades de aprendizagem, pois vê o educador como “sabedor” das coisas. Assim, somente quem tem necessidades de aprendizagem são os educandos, os “aprendizes”. Como conseqüência, não haveriam necessidades de aprendizagem comuns a ambos.
Quanto às inquietações cotidianas, elas são vistas por esta tradição como fenômenos comezinhos que pelo seu grau de fragmentação não representam senão aspectos da realidade que devem servir como ornamento de um conteúdo já pensado e definido antecipadamente. Perde-se de vista a riqueza da cotidianeidade enquanto condensação de uma realidade mais ampla que ela sim precisa ser o conteúdo porque unifica e liga a inserção de educadores e educandos.
Tratar do que estamos chamando de potencialidades criativas (com toda a ambigüidade que este termo encerra) é mais problemático ainda, pois essa capacidade humana, em si, é extremamente complexa e possui inesgotáveis vetores. Aqui preferimos nos referir àquela dimensão lúdica que embora se expressa de maneiras diversas, tem na arte um veio bastante importante.
O problema é que, igualmente, a arte normalmente é vista como um dom, uma qualidade transcendental de que poucos indivíduos são dotados, por razões misteriosas, o que reforça perspectivas preconceituosas, excludentes e, portanto, limitantes quanto ao alcance de iniciativas que visem promover a liberação de energias criativas dos indivíduos.
Que a “transcendência”, a afirmação de uma dimensão “mágica” nas coisas, seja uma das dimensões da arte não há a menor dúvida, mas que seja uma qualidade que se incorpora a indivíduos “especiais”, pelo poder da genética ou da intervenção divina, isto dá uma boa, longa e (também) cansativa discussão, pois se de fato somos oriundos de uma mesma fôrma (ou de um mesmo ser, sopro ou explosão) talvez o que não tenhamos construído em nossos espaços educativos seja fazer a cartografia das potencialidades/aptidões que nos cercam, das diversas possibilidades que cada indivíduo guarda dentro de si, como dimensão intrínseca de nossa existência.
Arte, aqui, não seria uma atividade meramente recreativa que se pode ou não se fazer, mas parte integrante do fazer-se humano. Incorporando este princípio à nossa dinâmica pedagógica, no futuro teríamos pais que além de se preocupar em saber se o filho aprendeu matemática, história ou língua portuguesa, se preocupariam também em saber se os meninos e meninas estavam aprendendo a pintar, cantar, compor poesias e músicas, montar esculturas, etc. Por pensar a arte como parte do fazer-se humano, Ernst Fischer (um austríaco que era poeta, jornalista, mas também foi ministro de Estado de seu país após a II Guerra) escreveu que o trabalho para um artista é um processo altamente racional e consciente ao fim do qual a obra de arte se expressa como realidade dominada e não um estado de inspiração embriagante.
Precisamos aprimorarmos o espírito no sentido de se deliciar com o conhecimento que os humanos historicamente nos legam e de, movidos por uma prazerosa e incansável teimosia, buscar explicações sobre perguntas que nos incomodam porque ainda não respondidas satisfatoriamente.
Assim, poderemos entender o fenômeno ditatorial da América Latina ouvindo “Apesar de Você”, de Chico Buarque; refletir sobre os horrores de uma guerra apreciando “Guernica”, de Picasso, ou a trágica desumanização da condição humana proporcionada pelo trabalho moderno, assistindo “Tempos Modernos”, de Chaplin; distinguir abordagens epistemológicas lendo “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco; ou distintas abordagens pedagógicas, assistindo “Sociedade dos Poetas Mortos”.

Comentários

Anônimo disse…
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse…
Gostei muito do texto, concordo com vc, acho que a arte deve ser vista com outros olhos, e nela possamos expressar toda forma de viver.
Fernanda Lourena.
Anônimo disse…
A arte é uma forma de agredaçer pela vida... e neim sempre os outros sabem disso.
adorei o texto!!!
Lorena Alves
Anônimo disse…
O conhecimento de si e do mundo é muitas vezes uma deliciosa aventura para alguns... porém, para os que não dominam a arte de fazerem-se humanos, o mesmo conhecimento torna-se uma viagem estéril e enfadonha...
Adorei o texto!
Ana Raquel
dra.neurawm disse…
A interrelação que se estabelece entre os humanos pelo ato de ensinar e aprender não pode prescindir da festa, do prazer em conhecer, do prazer em compartilhar, da dimensão estética que deve estar presente na prática educativa e em todo o processo pedagógico. Essa é uma interrelação que se estabelece (ou não) pela via de um ouvir sensível, de um olhar atento, curioso e extasiado, de um toque acolhedor, sem esquecer que a Psicologia já nos mostrou que nossa memória tem mais de cinco sentidos. E você bem lembrou Paulo Freire que nos ensinou a ver no desenvolvimento de uma sensibilidade estética um fator de humanização.
Obviamente que isso exige um compromisso político, um rigor científico e ético e uma postura vigilante do educador, no sentido de perceber as oportunidades de se recorrer também às produções artísticas disponíveis, que, além de desenvolver uma sensibilidade estética, poderão proporcionar uma aprendizagem significativa dos conteúdos de ensino.

Abraços com laços!

Postagens mais visitadas deste blog

Briga na Procissão, de Chico Pedrosa

A intempestividade da proposta de desfiliação do ADURN ao PROIFES

PROIFES e ANDES-SN: quando enfatizar diferenças é sinal de fraqueza