Educação e Sensibilidade

Dando continuidade a uma reflexão iniciada sobre Formação de Educadores.

Um dos desafios que o processo pedagógico impõe a educadores e educandos está em instituir um regime dialógico pelo qual as diferenças entre os agentes não se cristalize como “permanência”, mas como “transitoriedade”. Não pode existir transitoriedade das diferenças se se mantém em outros planos a relação entre “mestre” e “discípulo”. A relação instituída sobre essa dualidade, constrange a mutualidade que deveria presidir a relação de construção do conhecimento. E é a negação desse constrangimento o que possibilita que a idéia de dialogicidade se afirme plenamente.
Para isso, é preciso o cuidado em se aprender a ver para além do óbvio, principalmente quando parece ser óbvio que o Formador sempre está alguns degraus acima do Formando, quando na verdade eles estão em lugares diferentes.
O olhar para além do óbvio é uma qualidade muito bem abordada pela dramaturgia grega, em “Édipo Rei”, e por William Shakeaspeare, no seu clássico “Rei Lear”. No primeiro, o sacerdote Tirésias, limitado pela cegueira que o impedia de ver o mundo físico, prevê (porque vê, através do oráculo, o íntimo das pessoas) o conjunto de tragédias que perseguirão Édipo e seu reino. Indignado com as previsões de Tirésias Édipo castiga-o.
O ato de Édipo, de castigar Tirésias, expressa-se, na verdade, como demonstração do desespero de quem, crente que vê, se percebe destituído do poder de enxergar. O poder visionário de Tirésias dispensa a funcionalidade do olho. Quanto a Édipo, seus olhos somente vêem o que é captado pelos olhos que lhe adornam a face. É limitado. É o físico e o material. É portanto superficial.
Em “Rei Lear”, ocorre o mesmo e ainda um pouco mais. O Rei Lear não só acredita piamente no que vê mas também no que lhe dizem. Seus ouvidos são tão crédulos quanto seus olhos. É traído pelos próprios familiares, mas tem como grande colaboradora sua credulidade no que vê e ouve, o que o impede de ler a mentira nas palavras e atos daqueles que o traiam em seu próprio reino.
Ler o não expresso, ouvir o não dito, ver o não demonstrado, não são qualidades mágicas, mas desenvolvidas pelos humanos na sua desmesurada complexidade. E o lugar estratégico ocupado pela docência no processo pedagógico exige do educador que ele se exercite nesta arte de se relacionar e decifrar o não dito, o não visível, com a mesma persistência dos feiticeiros e xamãs em tribos de índios e os sacerdotes dos oráculos nas sociedades antigas, e sem o apego a credulidade que movia o Rei Lear. Talvez em tempos de robótica e informatização da vida, reclamar “a volta” aos feiticeiros e xamãs possa ser visto como uma utopia do “retorno ao atraso”, mas se trata tão-somente de desenvolvermos em nossa humanidade aspectos da atividade docente esquecidos ou diminuídos em sua importância ao longo de séculos de dilaceramento do ser humano, dividido em sua alma e corpo entre “os que pensam” e “os que fazem”, “os que mandam” e “os que obedecem”, entre “os que sabem” e “os que não sabem”.
Podemos lembrar, por fim, de dois personagens que se insurgem contra estas polarizações, cada um no seu respectivo universo, cada um com a sua polaridade, seu dilema, sua estratégia. São eles: Roy, andróide que lidera uma rebelião dos chamados “replicantes”, no filme “Blade Runner, o caçador de andróides”, de Ridley Scott; e João Grilo, um anti-herói criado por Ariano Suassuna no seu famoso “Auto da Compadecida”.
Roy lidera um grupo de andróides, originalmente fabricados para trabalharem como escravos dos humanos na lua. São criaturas artificiais que se revoltam com a sua condição de meros executores de ordens dos humanos e decidem tomar uma nave de volta para a Terra para se misturarem com os humanos (eles são réplicas de seres humanos, daí o nome “replicantes”) e viverem como tais. Renegam a desumana condição de escravo, impingida pelos humanos, para reivindicarem-se inclusos no mundo humano, ainda que, como máquinas que eram, tivessem um tempo de vida útil limitado a 6 anos.
Há um momento do filme em que Roy encontra seu criador e lhe solicita que lhe programe para que ele pudesse viver mais do que os 6 anos previstos. Assim, poderia não apenas se misturar aos humanos mas viver tanto tempo quanto eles. Diante da negativa do seu criador, ele mata-o, arrancando-lhe os olhos.
A atitude de Roy em questionar seu criador por tê-lo pensado como mero executor de ordens e negar-lhe um outro programa que o fizesse “mais” humano é ilustrativo de um outro questionamento que deve estar permanentemente permeando os pedagogos quanto à sua formação: se esta será pensada à luz de uma lógica que separa que “pensa” e quem “executa” a docência: ou se será, pelo contrário, pensada como o feliz encontro entre duas dimensões da práxis humana dilacerada, ao longo da história, pelo paradigma tecnicista.
Como Roy, devemos nos voltar contra quem busca nos “formar” como seres limitados e destinados a executar ordens de outrem, nos negando a possibilidade de criarmos autonomamente nossa própria aventura. Ou, se quisermos usar uma linguagem mais em voga (e realizar um paralelo com um outro filme igualmente perturbador “Matrix”), ao invés de aceitarmos passivamente o programa que nos querem implantar, temos que pensar que programa criaremos para comandar nossas ações.
E o segundo deles, como já disse, é o João Grilo. O seu caráter é o mesmo de um outro personagem difundido pela cultura popular, o Pedro Malasartes, indivíduo matreiro, “malandro”, cuja trajetória é marcada por situações nas quais somente sua esperteza lhe garante finais felizes. O grande escritor Ariano Suassuna se valeu dessas características de Pedro Malasartes para compor o seu João Grilo.
No “Auto” a principal qualidade de João Grilo, é aquela que lhe permite escapar de toda sorte de desventuras. É sua capacidade de ler os demais personagens que com ele se enveredam na história. É uma leitura psico-sócio-antropológica, ainda que empírica, intuitiva. É a partir dessa leitura dos outros que ele estabelece laços entre o seu destino e dos demais personagens e produz estratégias em torno das quais busca (e obtém) êxito para si e para os seus.
O reconhecimento do outro ser como condensação de complexas relações e trajetórias sócio-individuais é a chave para que a relação entre sujeitos no processo educacional se instaure não como verticalidade opressora, na qual sujeitos se submetem a um outro que se considera “sabedor”, mas como horizontalidade na qual diversos “sabedores”, a partir das especificidades (espaçotempoculturais) que os identificam desenvolvem estratégias de, juntos, decifrarem caminhos.
Somente uma concepção conscientemente opressora se nega a empreender o reconhecimento do outro como fundamento primeiro de um processo educacional. E a presença desta concepção entre nós marca nossa trajetória desde que os portugueses aqui chegaram. Naquele momento, a “estranheidade” que fundamentou a relação entre portugueses e nossos nativos propiciou a consagração destes como “selvagens” e a legitimação de um processo de proporções trágicas, cujas opções apresentadas pelo invasor branco se resumiam a renderem-se e converterem-se à cultura européia ou voltarem ao reino de Tupã, para junto de seus antepassados, pela via da morte.
Como diz Paulo Freire em várias de suas obras, e em especial na Pedagogia do Oprimido, há um opressor dentro de nós que precisa ser reconhecido e percebido na sua relação com um oprimido que também nos habita. Esta contradição, longe de ser algo negativo é a condição mesma do parto de um outro (novo) homem, um ser que não teme a liberdade, mas busca-a como afirmação de sua humanidade. É, portanto, um processo de dilaceração da nossa própria alma. E alma não é algo que se estuda ou se apreende de uma forma técnica, mas no exercício do próprio viver. Talvez por isso, Clemente de Alexandria tenha escrito que os educadores eram “cuidadores de almas”.

Comentários

dra.neurawm disse…
Somente hoje consegui ler com mais cuidadinho suas duas reflexões. Comungo da perspectiva assumida no seu exercer-se formador de educadores e educadoras, pedagogos e pedagogas. Ter um olhar ocupado em desenvolver todas essas facetas da sensibilidade humana, que é desenvolver um ouvir, ver e sentir bem mais amplo que a somatória daquilo que nossos sentidos conseguem captar, é fundamental na condução dos diversos processos educativos/pedagógicos em que atuarão/atuamos e para os quais os são/somos formados. Ao conceber as diferenças como transitoriedades acreditamos na capacidade humana de aprender ao longo da vida, não importando em que ponto começamos ou retomamos nossos estudos. Ao acreditar nas ilimitadas potencialidades humanos assumimos uma postura de acolhimento de si, de nossas incompletudes e do outro como um “eu outro eu” com as mesmas limitações provisórias e as mesmas surpreendentes possibilidades. Abraços com laços!

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