Educação Prometéica e Formação de Educadores

Este escrito remonta a uma aula da saudade que fui convidado a proferir em Caicó para uma turma de queridas concluintes do Curso de Pedagogia, por volta de 2000. Na época, lia um livro do Neidson Rodrigues que muito me marcou, cujo título é "Elogio à Educação". Escrevi o que seria o roteiro da aula e depois percebi que poderia transformar-se em um artigo. Publiquei-o dividido em partes em dois números do Da Vinci, um encarte do Diário de Natal. Achei por bem publicá-lo de novo neste espaço (já com algumas reformulações) até como forma de viabilizar seu maior acesso. Solicito aos leitores (especialmente colegas professores e estudants) que expressem suas opiniões sobre o que trato nesse artigo.
Então lá vai...
A temática da Formação dos Educadores é atravessada por várias questões, a começar pela expressão "Educadores", expressão que designa um campo vasto de atividades com conteúdos distintos, em espaços igualmente diversos...Há os que se remetem à "Formação de Professores", na medida em que o conceito de "educadores" é bastante amplo para designar uma atividade bastante específica e que tem características bem precisas, que constituem um modus operandi profissional...Enfim, cada denominação remete a uma base teórica e conceitual, remete a uma orientação em termos de práticas e propostas formativas. Não sou um estudioso da área, mas minhas atividades profissionais estão atravessadas por processos nos quais não estou diante apenas de futuros "professores" ou "profissionais do ensino". Penso sempre que nas salas de aula ou nos espaços pedagógicos em que estou inserido, estou compartilhando experiências com pessoas cujos destinos e presentes me escapam, portanto, antes de tudo, devo interagir com elas na condição de "educadores" que somos todos (em maior ou menor escala), porque inseridos em processos de educação.
Nesse sentido, de mãos dadas com o risco que corre quem não é um especialista da área, o que me move aqui é refletir sobre alguns princípios que poderiam fundamentar práticas formativas capazes de fugir a uma certa tecnificação daqueles que atuam nos processos pedagógicos formais ou não-formais. Uma concepção que intenciona formar “técnicos de ensino”, “professores”, “profissionais da educação”, e não “educadores”.
Queremos, aqui, discutir aspectos da formação do educador que não se enquadram nessa perspectiva, para a qual os saberes que plasmam um “educador” se reduzem às técnicas e metodologias que “operacionalizem” eficaz e eficientemente o processo de ensino e aprendizagem.
A perspectiva que assumimos privilegia outro campo dos saberes necessários à formação de educadores (sem aspas). Saberes que dialogam com a capacidade eminentemente humana de sentir e de, partindo de suas sensibilidades, produzir processos de aprendizagem próprios e necessários para o viver enquanto totalidade. A trilha que escolhemos para falar desses saberes nos é oferecida por alguns personagens ficcionais ou mitológicos produzidos pela humanidade através de obras literárias, produções míticas e numerosos bons filmes.
Optamos por sinalizar para algumas das questões mais importantes do processo de formação de pedagogos e educadores de uma maneira mais geral, compartilhando a saga de personagens que povoam a produção ficcional da humanidade. São heróis, vilões e anti-heróis dos quais vamos lembrando e integram nossos arquétipos sociais-históricos-culturais. São criaturas fictícias, mas que guardam um pedaço de cada um de nós e da humanidade como um todo, mesmo que alguns deles sequer sejam humanos no universo narrativo em que estão inseridos, muito embora, na maioria das vezes sua presença “não humana” é apenas um contraponto de afirmação de uma humanidade que não se esgota na aparência física ou na sua origem biológica, mas no seu próprio fazer-se e capacidade de expressar-se em valores e condutas “humanistas”.Essas personagens realizam movimentos, tomam atitudes, vocalizam valores e sentimentos que expõem-nos à tarefa de refletirmos sobre o que educadores somos ou que modelo de educadores almejamos ser.
Aqui, a escolha de alguns personagens denuncia o modelo ou o conjunto de preocupações que, ainda que não esgotem a temática, não invalida o exercício, mas o enriquece na medida em que se abre para a entrada e a manifestação de outros personagens e as preocupações e modelos que encerram e expressam.
Um bom começo é uma visita à mitologia grega, a mãe de várias das metanarrativas que ocupam nossas representações e fundam um conjunto significativo do que orienta nossas ações Nela encontramos a ousadia humanística de Prometeu, a sede de conhecimento de Ulisses e a interessante articulação entre conhecimento e prazer que os próprios gregos realizavam ao celebrarem a divindade Dionísio, deus do prazer, no templo de Apolo, o provedor do conhecimento.
Aqui, nos remeteremos a Prometeu.
O que nos fascina nessa personagem que nem humano era? Talvez este seja o primeiro grande atrativo! Prometeu era um Titã, de uma raça que habitava a Terra antes dos humanos, mas sua história apresenta-o como profundo amante dos humanos.
Na origem do mundo, Zeus encarrega-o e a seu irmão, Epitemeu, à tarefa de criar os seres que habitariam a terra dotando-os de características que os diferenciassem entre si. Epitemeu vai criando cada espécie e atribuindo-lhes uma determinada característica, até que chega o momento de criar o ser humano. Epitemeu já não sabe o que fazer diante da diversidade de seres e suas respectivas qualidades. Prometeu, então, dota o homem de uma qualidade ausente nos demais seres: a inteligência, elemento fundamental para a autonomia humana em relação à natureza e os deuses.
Diante desta possibilidade, os deuses passam a exigir dos humanos suas honras e decidem realizar uma assembléia na qual seriam consagrados os direitos e deveres dos homens perante os deuses. Nessa reunião, representando os humanos, Prometeu oferece um touro em sacrifício aos deuses. O animal estava dividido em duas partes uma das quais caberia aos deuses e a outra se destinaria aos homens. Uma das partes continha ossos envoltos por apetitosas camadas de gordura, enquanto a segunda, formada de carnes e entranhas, estava encoberta com o couro do animal.
Sem o saber, e maravilhado com a visão convidativa da parte gordurosa, Zeus escolheu aquela parte que, na verdade, era mais osso que carne. Sua ira se volta contra Prometeu e os humanos, os quais se deliciaram com a melhor porção de carne.É esse ser que protagoniza uma série de situações através das quais ao mesmo tempo se afirma em favor da capacidade de autodeterminação dos humanos e põe em xeque o poder quase infinito dos deuses do Olimpo, por meio de transgressões cada vez mais ousadas.Zeus decide negar aos humanos o acesso ao fogo (elemento fundamental para o desenvolvimento tecnológico), fustigando Prometeu a voar até o Olimpo e roubar o fogo dos deuses para, em seguida, o oferecer aos humanos, inaugurando, a partir daí, uma nova era.
Em sua sanha de se vingar de Prometeu e os humanos, Zeus envia uma bela mulher, Pandora, para que esta seduzisse os humanos. Apesar das advertências de Prometeu os humanos aceitam o “presente” de Zeus e ao abrirem uma caixa misteriosa que ela trazia consigo, permitem que de dentro da tal caixa saiam e se espalhem a fome, a doença, a dor e a destruição. A partir daí, os humanos, que não precisavam trabalhar e vivam em grande fartura, passam a ter que suar para colher os frutos necessários a sua sobrevivência.
Quanto a Prometeu, Zeus o acorrenta no alto de um penhasco, onde uma águia, todos os dias, investe contra ele para bicar-lhe o fígado, de modo que a sua ferida nunca cicatrize. Paradoxalmente, quem o salva desse trágico círculo vicioso é Hércules, filho de Zeus com uma humana, como se a transgressão humana à tirania dos deuses fosse uma sina.
A narrativa mítica nos coloca diante de um personagem forjado numa missão autoimposta de afirmação da humanidade e suas potencialidades frente a tirania dos deuses. Uma missão que se transpõe ao nosso mundo como uma das mais importantes dimensões do ato de educar: a busca incessante em reconhecer, na nossa realidade, os “deuses” e as suas respectivas “tiranias”, limitantes e negadoras do pleno florescimento das mais generosas e promissoras possibilidades humanas. No cerne do processo formador de educadores está, portanto, a assunção da tarefa prometéica de formar humanos dotados de autonomia e amantes da busca pela liberdade, ante os desejos tirânicos daqueles que se sentem “deuses”, autores e definidores dos destinos dos outros. Um processo formador de educadores e educandos deve expressar a ética dos “caminhantes juntos” ao invés da ética dos “condutores de gente”.

Comentários

Anônimo disse…
Seu texto professor é bastante metafórico,pois você usa a história dos deuses e compara ao processo de formação de professores.Gostei do texto porque nos leva á pensar e tomar uma postura crítica frente a nossa formação pedagógica.Giliane,aluna de pedagogia 2008.2.

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